Uma conversa sobre espiritualidade

Uma conversa sobre espiritualidade

Várias áreas do saber vêm enfatizando o tema da espiritualidade como estratégia de enfrentamento dos fenômenos advindos da trajetória da vida nos contextos de saúde e doença dos indivíduos.

Nazaré Jacobucci (*)


É inegável que a espiritualidade é uma característica humana que, dentre outros aspectos, proporciona ao indivíduo a possibilidade de encontrar significado e propósito para a sua vida. Embora estejam relacionadas, espiritualidade e religião não são equivalentes. A espiritualidade é estrutura e a religiosidade é processo. Giovanetti diz: o termo espiritualidade designa toda vivência que pode produzir mudança profunda no interior do homem e o leva à integração pessoal e à integração com outros homens e a natureza. A espiritualidade tem relação com valores e significados: o espírito nos permite fazer a experiência da profundidade, da captação do simbólico, de mostrar que o que move a vida é um sentido, pois só o espírito é capaz de descobrir um sentido para a existência. Leonardo Boff fala que a espiritualidade não é monopólio das religiões nem dos caminhos espirituais codificados. A espiritualidade é uma dimensão de cada ser humano. Várias áreas do saber vêm enfatizando o tema da espiritualidade como estratégia de enfrentamento dos fenômenos advindos da trajetória da vida nos contextos de saúde e doença dos indivíduos.

Religião é proveniente do latim “religio” e “ligare”, que significa ligar de novo, compreendendo a busca de Deus por parte das pessoas. Segundo Liberato, religião é um sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos designados para facilitar o acesso ao sagrado. Um código de crenças que orienta comportamentos, determinado fortemente pela cultura. A prática de uma religião contribui com a convicção de que existe uma dimensão maior, responsável pelo controle sobre as adversidades presentes na vida, capacitando o indivíduo a lidar com os acontecimentos de forma mais serena, confiante, e reduzindo o estresse e a ansiedade. A experiência da religiosidade faz parte de uma vida com sentido, em que o ser humano explora a força de sua dimensão espiritual.

Na minha prática diária com pessoas em processo de luto e/ou finitude, frequentemente as vejo conectadas com uma religião, mas não com o Divino em si. Nesses casos, não há uma comunhão de fato com o Divino, aquele que nos traz a serenidade para compreender os mistérios que compõem a vida. Tenho observado uma desconexão aqui: ao invés da prática religiosa trazer serenidade para o indivíduo em momentos difíceis da vida, ela traz estresse e raiva. Atendo pessoas que em seu processo de luto trazem consigo uma raiva imensa de Deus, como se Ele as tivessem traído. Falas como: “Por que Deus levou o meu filho? Ele era tão bom” – “Eu rezei tanto para que Deus protegesse meu marido/esposa e ele permitiu que aquele acidente horroroso acontecesse” – “Eu estou com muita raiva! Como Deus pode fazer isso comigo justo agora?” e tantas outras frases são proferidas contra Deus, claro, essas frases são ditas num momento de profunda dor e tristeza. Mas mesmo nesse contexto precisamos fazer uma reflexão sobre essa crença em um Ser Divino que fará tudo o que nós pedirmos e nos livrará de todos os males que acometem a humanidade; inclusive a morte. Algumas pessoas ao longo da vida estabelecem uma relação simplesmente transacional com Deus e não uma relação profunda e transformadora.

Em verdade, ao longo da história, muitas pessoas mantiveram uma relação superficial com esse Ser Divino o qual chamamos de Deus, e não uma relação de comunhão, com sentido e, muitas vezes, de resignação diante de seus mistérios. Desde o nascimento sabemos que um dia vamos morrer, que um dia as pessoas que amamos também irão morrer e que não temos o menor controle sobre certos acontecimentos da vida. Nós não sabemos quem morrerá primeiro – os pais ou os filhos – e, principalmente como iremos morrer. Não temos como controlar a morte. Ela acontecerá em algum momento e não temos a menor ideia de quando será. Tentar controlar a morte é como tentar controlar as batidas do coração: impossível. Ela simplesmente acontecerá.

Observo pessoas que depois de vivenciarem uma situação difícil e desafiadora se revoltarem e aniquilarem uma relação que deveria ser sagrada e com base na serenidade e na resignação. Hoje, vivemos numa sociedade com um acúmulo de informação que beira o caótico, mas sem uma profundidade que nos leve a ter uma aliança enraizada entre o sagrado que existe em nós e o Ser Divino que nos permite compreender que a vida é permeada por ciclos e pela dualidade. Haverá momentos bons e ruins, alegres e tristes, doces e amargos, justos e injustos, de ganhos e de perdas e, claro, de nascimento e morte. É a apreensão dessa dualidade que alarga a nossa alma e nos traz sabedoria para continuarmos a jornada da vida.

Gostaria de compartilhar com vocês um pouco do meu relacionamento com o Divino, da minha espiritualidade, e a relação disso com as perdas e o luto. É claro que eu fico triste diante de uma perda e, às vezes, destruída. Já experienciei a dor do luto algumas vezes em minha vida. Mas não fico inconformada. Eu já assimilei a informação de que posso perder a quem amo a qualquer instante. Busco manter o equilíbrio entre as minhas expectativas e a realidade. Afinal, as minhas expectativas são abstratas, mas a morte é concreta. Essa forma de compreender os acontecimentos da vida tem como base os ensinamentos do estoicismo, escola filosófica da Antiguidade. Há um pensamento que eu, particularmente, gosto muito –  “Não espere que o mundo seja como você deseja, mas sim como ele realmente é. Dessa forma, você terá uma vida tranquila”. Segundo o filósofo e psicoterapeuta escocês Donald Robertson, “para quem vê conformismo nessas palavras, uma ressalva: eles não estão propondo que você seja passivo em relação à vida, mas que aceite as coisas que estão além do seu controle e que já aconteceram”.  

Eu já vivenciei momentos de graça plena em minha vida, mas também já experenciei situações bem difíceis. Quando me é concedia uma graça divina eu agradeço, e quando me é imposta uma dificuldade, eu não me revolto, eu acolho aquela dor e/ou tristeza e busco ficar em profundo silêncio e em estado de meditação com Deus para a compreensão daquele momento. Somente quando nós silenciamos a nossa mente, mergulhamos no templo sagrado interior que há em nós, entramos num estado de profunda reverência e conseguimos nos conectar com o Divino, é que compreendemos que estamos aqui para servir a algo maior. É a partir dessa consciência que entendemos que nada nos impedirá de seguirmos nossas vidas com propósito.

Cultivar a pratica do silêncio interior na vida cotidiana não é tarefa fácil, mas não é impossível.  Para isso é preciso se concentrar em desenvolver a autodisciplina e o autocontrole. Isso pode ser feito por meio da meditação, da prática de Mindfulness, da oração, ou simplesmente da reflexão sobre seus próprios pensamentos e comportamentos.

Uma prova de que Deus esteja conosco não é o fato de que não venhamos a cair, mas que nos levantamos depois de cada queda” (Santa Teresa de Ávila)

Motivação dessas reflexões
Esse texto foi escrito após ter participado da 1º Conferência Internacional: Sonhos, Psicologia Profunda, Alma e Espírito, organizada pelo Instituto Sedes Sapientiae em parceria com a St Mary’s University de Londres. Na conferência muito discutimos sobre a experiência humana com o sagrado, tanto consciente quanto inconscientemente, e os estudos e achados de Carl Jung sobre o tema. Após a conferência, e ainda muito impactada por falas tão expressivas e reflexivas sobre Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, Santo Agostinho, Rumi (teólogo sufi persa do século XIII) e Thomas Merton (monge trapista da ordem dos beneditinos), fiz uma análise sobre o quanto esse tema perpassa pela minha prática clínica e, claro, fiz uma profunda reflexão pessoal sobre a minha própria relação com o Sagrado e/ou Divino. Por ser um tema complexo e pouco discutido na atualidade, principalmente no âmbito acadêmico, decidi compartilhar com vocês essas reflexões.

O texto é totalmente dedicado a Santa Teresa de Ávila. Teresa foi uma mulher muito à frente do seu tempo e que nos deixou uma mística inspiradora. Soube com determinação e coragem enfrentar todas as dificuldades que lhe foram impostas. Ela quase foi levada à fogueira pela Inquisição Católica, pois sua sintonia com Deus era tão profunda que ela chegava a levitar, e isso não era visto como bons olhos por algumas autoridades da Igreja. Foi humilhada por muitas outras freiras da Ordem das Carmelitas, mas ela não se deixou abalar em nenhum momento. Ao contrário, ela decidiu fundar uma ordem que estivesse em mais consonância com seu propósito de vida e assim fundou a Ordem das Carmelitas Descalças. Em 1576, uma série de perseguições começou por parte dos carmelitas da antiga ordem contra Teresa, seus amigos e suas reformas. Em acordo com um conjunto de resoluções adotadas no capítulo geral em Placência, proibiram a fundação de novos conventos e condenaram Teresa a uma reclusão voluntária em uma de suas instituições. Ela obedeceu e escolheu ficar no Carmelo de São José em Ávila, a primeira. Seus amigos e subordinados foram alvo de grandes provações. Finalmente, depois de diversos anos, suas súplicas por escrito ao rei Filipe II da Espanha conseguiram aliviar a situação. Em 1579, os processos contra ela na Inquisição foram engavetados, o que permitiu que suas reformas continuassem. Um memorando do papa Gregório XIII permitiu a criação de um provincial especial para o novo ramo das freiras carmelitas descalças. Teresa fundou dezessete conventos, todos menos um fundados pessoalmente por ela. Uma mesma quantidade de mosteiros para homens foi também estabelecido durante os vinte anos de sua atividade reformadora. Em 1622, quarenta anos depois de sua morte, Teresa foi canonizada por Gregório XV. O cerne do pensamento místico de Teresa em todas as suas obras é a ascensão da alma para estar em comunhão com Deus por meio do silêncio e da oração.

Referências

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Barros, A. Religiosidade, Espiritualidade e Religião: você sabe a diferença? Guia da Alma [Site]. abr./2022. Disponível em: https://guiadaalma.com.br/religiosidade-e-espiritualidade/

BBC News Brasil. Estoicismo, a filosofia de 2 mil anos cada vez mais usada como receita para sobreviver ao caos. Fórum BBC World Service [Online]. dez./2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-46458304

Boff, L. Espiritualidade : um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2001. 96 p.

Cadernos Filosóficos [Site]. O que é Estoicismo? Uma Filosofia Atemporal para Aplicar na Prática. mar./2023. Disponível em: https://www.cadernosfilosoficos.com.br/blogs/arte-e-filosofia/o-que-e-estoicismo-uma-filosofia-atemporal-para-aplicar-na-pratica

Freitas, M.H. Psicologia religiosa, psicologia da religião / espiritualidade, ou psicologia e religião/espiritualidade? Rev. Pistis & Práxis: Teologia e Pastoral, Curitiba, v. 9, n. 1, p. 89-107, jan./abr. 2017.

Galvão, L.H. A Mística em Santa Teresa de Ávila. Canal: Nova Acrópole, 2020. 1h36. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jEUfZgVywjU

Giovanetti, J.P. Psicologia e espiritualidade. In.: Amatuzzi, M. M. (org.) Psicologia e espiritualidade. São Paulo: Paulus, 2005. p. 129-145.

Henning-Geronasso, M. C.; Moré, C. L. O. O. Influência da Religiosidade/Espiritualidade no Contexto Psicoterapêutico. Psicologia: Ciência e Profissão, n. 35, v. 3, p. 711-725, jul./set. 2015. 711–725. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/ZYpkcHTjNccSTsH6TH7R5Sn/?lang=pt#

Liberato, R. Espiritualidade e empatia: um estudo sobre aspectos espirituais e a relação terapêutica em cuidados paliativos. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019, 140 p.

Pinto, E. B. Espiritualidade e Religiosidade: Articulações. Revista de Estudos da Religião, n. 4,  p. 68-83, dez. 2009. Disponível em: https://www.pucsp.br/rever/rv4_2009/t_brito.pdf

(*) Nazaré Jacobucci – Psic. Mestre em Cuidados Paliativos (M.Sc.). Psic. Especialista em Perdas e Luto. Especialista em Psicologia Hospitalar. Psychotherapist Member of British Psychological Society (GMBPsS). Blog Perdas e Luto. Autora do livro Legado Digital: Conhecimento, Decisão e Significado – Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital.

Foto destaque de RDNE Stock project/pexels


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