Creio que o passar dos anos faz dessas coisas, de eu me perceber muito parecida com minha mãe, e o que sempre existiu se torna ainda mais forte.
O aparador de madeira encostado na charmosa janela no telhado do sótão guarda aquelas louças que quase nunca usamos, os copos de cristais dos dias de festa, xícaras para o chá dos dias frios com visitas que sempre são de casa e, portanto, não usam as tais xícaras, guardanapos especiais e outras tantas louças bonitas e antigas que ali permanecem guardadas.
Em cima do móvel, junto com alguns enfeites, um vaso de antúrio e outros dois de flor de maio prontas para abrir emolduram a vista das araucárias e das telhas do prédio que tem sido meu lar por vários meses desta interminável quarentena.
Antes de dormir, já virou hábito fechar as cortinas da janela do aparador para proteger os vasos das baixas temperaturas da madrugada.
– Bom seria se as cortinas fossem de flanela e não deste voal fininho.
– Não importa se faz sentido ou não. Feche a cortina exatamente como sua mãe faz.
Esta mania de conversar comigo mesma também vem dela. Com o passar dos anos me percebo muito parecida com minha mãe. Sempre nos demos bem apesar de, por muito tempo, soar estranho ela ser tão metódica. Agora vejo que sem método, a rotina de uma casa fica o caos. As semelhanças são gritantes.
– Perceba o tanto de botão que tem nestes vasos de flor de maio. Vai me dizer que fechar a cortina não ajuda?
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– Verdade. Deve fazer algum sentido.
Os dias têm sido lindos com o azul do céu contrastando com o verde da vegetação típica das montanhas. O calor do sol se mistura com o ar gelado que invade as narinas junto com o perfume das flores. Os pássaros não param de cantar e por vezes invadem a casa pela janela do aparador.
Tudo é poesia e por minutos temos a sensação de que a vida vai bem e segue seu curso apesar da tristeza que assola o mundo e que machuca por tanto sofrimento na terra. Todos os dias às 16hs falo com meus pais por vídeo chamada, mas com minha mãe o papo rola solto.
– Mãe como faço quiabo?
– Faz um refogado gostoso, mas não esqueça de deixar de molho na água com vinagre para tirar a baba.
– Aliás, e teu tricô, já terminou? Quer que eu meça meu colete para ver o comprimento?
– Quero sim. Estou tricotando com calma para não errar, afinal você não está aqui para concertar meus erros.
– 70 cm
– Com a barra? Oba estou quase acabando!
– E meu pai? Por que está quieto?
– Não entendo de tricô, nem de quiabo.
Este Dia das Mães novamente será diferente. Continuamos isolados pelos corpos, não haverá abraço, almoço, aglomeraçãozinha familiar, eu não estarei chateada com meus filhos que aprenderam direitinho que não devemos ser consumistas, nem com meu marido que jamais se lembra nesta data que sou a mãe dos filhos dele. Enfim, os problemas são tantos que perde o sentido ficar aborrecida com bobagens. Se cada filho que vai comprar um presente para a mãe que, por sorte tem tudo, gastasse o dinheiro do presente com cesta básica para uma família em apuros, esse sim seria um bom presente para ela, pois mostraria que valores sólidos foram aprendidos.
Para minha mãe pretendo dar este texto que servirá como um decreto:
Asseguro para qualquer fim que sua filha tem todo o direito de ser o tanto de você que ela conseguir, de falar sozinha, de andar mancando com dor nas juntas, de fechar a cortina de voal para as plantas não sentirem frio, de molhar o pão no bife, de fazer tentativas com erros e acertos para ser a melhor mãe do mundo e de envelhecer com ironia e dando risada dos problemas que a vida apresenta.
No mais, vou encher minha mãe de amor que mesmo que virtual, sei que chegará ao seu coração como a arte do pintor John Singer Sargente (1856-1925) que nos atinge em cheio.
No quadro Sra. Fiske Warren (Gretchen Osgood) e sua filha Rachel, ele retrata com maestria o amor entre mãe e filha onde a paz parece protagonizar a cena por ele pintada. Nascido na Itália, era filho de imigrantes norte-americanos e viveu a maior parte do tempo na Europa.
No retrato feito em 1903 e exposto no Museu de Fine Arts de Boston, a predominância da cor rosa traz suavidade ao olhar do espectador que se entrega ao conforto do apoio do rosto da filha no ombro da mãe.
Ao trabalhar o amor na Arte com os idosos do meu convívio profissional e afetuoso, o amor de mãe foi inúmeras vezes citado por eles.
Pelos filhos o amor parece explodir do peito, pela mãe ela parece estar cravado ao ponto de nos constituir.
Faço uma pausa no texto para ir cortar o cabelo aproveitando que o salão está vazio.
– Como você está parecida com sua mãe, diz a cabelereira que nos conhece faz tempo.
Por trás da máscara dou um sorriso e respondo:
– Sei bem disso
Com o cabelo cortado volto ao texto pensando na minha mãe e o quanto estamos fortalecidas como mãe e filha. Creio que o passar dos anos faz dessas coisas e o que sempre existiu se torna ainda mais forte.
Quanto aos meus filhos e marido, sei que eles devem estar quebrando a cabeça para pensar em um presente para mim e por isso sugeri que cada um comprasse uma cesta básica para famílias carentes aqui da região da Mantiqueira. Claro que meu coração de mãe se encheu de orgulho com a reação que eles tiveram.
E assim sigo a vida vivendo a cada dia a semelhança que tenho com minha mãe que nunca deixou nenhum morador de rua que passasse por nossa casa passar fome. Creio que no mercado ela já comprava algo a mais para essa gente sofrida e que para ela nunca foi invisível.
Vejo o aparador e percebo que tem mais flor de maio aberta.
Lá de fora as araucárias parecem sorrir com seu único e rígido tronco vertical com os galhos se abrindo apenas lá no alto. Olho pela janela e entendo o recado: Só com muitos galhos podemos alcançar o céu.
Feliz Dia das Mães!
P.S. Beijo especial para a melhor mãe do mundo e aos meus filhos Yuri, Bruno, Larissa e Taeko que me fazem ser esta mãe orgulhosa e faceira. Amo vocês.