Rememorando o violeiro, o cantador…

Vai, vai, vai começar a brincadeira. Tem charanga tocando a noite inteira. Vem, vem, vem ver o circo de verdade. Tem, tem, tem picadeiro e qualidade. Corre, corre, minha gente que é preciso ser esperto… (Sidney Miller)


É sábado, noite, dia de um friozinho que faz a gente querer se entregar às lembranças e rememorar, se é que você me entende. E nesse vai e vem de momentos, alguns coloridos e muitos em branco e preto, bate à porta da minha emoção o cantador Sidney Miller (18 de abril de 1945 — 16 de julho de 1980), direto do túnel do tempo, anos 60, com sua delicada e inesquecível música “O Circo”.

Presentes assim, quando chegam pelas mãos do amor, fazem borbulhar as emoções, normalmente escondidas, que se traduzem em lágrimas de saudades que, mais a frente, vocês entenderão: “Foi-se embora e eu ainda era criança”.

Assim, numa brincadeira entre o cantador e eu, disfarçada de palhaça, equilibrando-me no picadeiro dos dias, reinterpreto o “O Circo” em homenagem a esse mago das letras e, claro, a todos aqueles, que viveram tempos de luta e resistência, sem perder a ternura jamais.

E com vocês: o cantador e eu, numa só lembrança…

Corre, corre violeiro que já vai, vai, vai começar a brincadeira, e olha, olha que tem menina que te espera toda aparelhada de palhaça, sou eu meu cantador.

Mas tenha calma violeiro, vai ter charanga tocando a noite inteira e essa é pra você dançar até o dia raiar e a lua dormir.

Quando o povo chegar, pegue minha mão e venha, venha ver o circo de verdade. Lá você verá picadeiro e qualidade, não perde o bonde não…

…Que eu te espero, corre, corre, você e toda minha gente que é preciso ser esperto, tem fila pra lá de onde Deus quiser, é longe, é bem pra lá de onde o mundo acabar.

Mas quem quiser que vá na frente, vê melhor quem vê de perto e eu não perco isso nem que mãe e pai me puxem pela orelha que já arde de tanta malandragem.

E não é que no meio dessa folia danada, em plena noite alta, céu aberto de rasgar e eu aqui a te esperar, que de repente sopra um vento de arrasar e que insiste a protestar, fala que fala que faz o teto despencar e, para tudo piorar, lá se vai a lona.

Ah, aquieta o coração meu cantador, é a natureza e suas traquinagens, tudo pra que a lua encantada, de carona, também pudesse ver a festa.

Que festa meu violeiro, lembra do danado do trapezista que mortal era seu salto? Balançando lá no alto parecia de brinquedo, como aqueles da nossa infância que na escuridão da noite brincavam de se fartar, tinham vida e bailavam até o dia chegar.

Mas esse balançar fazia tanto medo naquele tal do Zezinho do Trombone, de renome consagrado, que esquecia o próprio nome. Era a emoção que tomava conta do pobre ou quem sabe era lá seu diabinho só a incomodar.

E tanto que fazia que o tal acabava abraçando o microfone pra tocar o seu dobrado e que dobrado! Não tinha pra ninguém, era uma cantoria só… e eu, meu cantador, continuava a te esperar.

Como o tempo passou…

Hoje sei que fazes versos pro palhaço que na vida já foi tudo. Já foi soldado, carpinteiro, seresteiro e vagabundo. Será você, meu cantador? O sem juiz e o sem juízo fez feliz a todo mundo.

Hoje sei que no fundo não sabias que em seu rosto coloria todo encanto do sorriso que seu povo não sorria. Essa é a dor do meu cantador.

Aquele de chicote e de cara feia e que de domador fica mais forte, meia volta, volta e meia, meia vida, meia morte, mas terminando seu batente de repente a fera some.

De um domador que era valente, noutras feras se consome.

Não perca nenhuma notícia!

Receba cada matéria diretamente no seu e-mail assinando a newsletter diária!

Ah meu nobre violeiro, quanta dor. Seu amor indiferente, sua vida e sua fome, corre, corre violeiro.

Atenção meu cantador: fala o fole da sanfona, fala a flauta pequenina, que o melhor vai vir agora que desponta a bailarina. Que o seu corpo é de senhora, que seu rosto é de menina, a menina que te espera.

Quem chorava já não chora, quem cantava desafina porque a dança só termina quando a noite for embora, então me dê a mão, meu cantador…

…Que vai, vai, vai terminar a brincadeira, olha que a charanga tocou a noite inteira.

Morre o circo, mas renasce aqui e agora na lembrança do homem e da mulher que somos hoje, nos cabelos prateados que a vida vivida nos deu, nas rugas grampeadas pelo tempo e na dor e na alegria da alma. Esse é o nosso longeviver.

“Foi-se embora e eu ainda era criança”, mas com sua charanga voltou, nesse rememorar, nas palavras do violeiro, nas palavras do meu cantador.

Sidney Miller…

Carioca de Santa Teresa, Sidney Miller, surge no cenário musical na década de 60. Seu nome se tornou nacionalmente conhecido no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record (1967), quando ganhou o prêmio de melhor letra, pela bela “A estrada e o violeiro”, interpretada por ele, em dueto com Nara Leão.

“Trago comigo uma viola só para dizer uma palavra só para cantar o meu caminho só porque sozinho vou a pé e pó. Guarde sempre na lembrança que…”

Aos 35 anos foi encontrado morto em seu apartamento, no bairro carioca de Laranjeiras, no dia 16 de julho de 1980.

Consta no livro “Timoneiro” de Alexandre Pavan que em fins dos anos 1970, o artista era encoberto pelo homem comum, funcionário público na Funarte. Mesmo que, sob o comando do timoneiro Hermínio Bello de Carvalho, na época, aquele fosse um órgão de resistência cultural dentre do próprio governo, Sidney sentia-se como um peixe fora de sua praia musical. Daí a depressão que, em meio ao alcoolismo, teria levado à precoce e não explicada morte: parada cardíaca natural ou suicídio?

A verdade? Nunca saberemos, mas o coração, quando infeliz, dá lá seus sinais e, a depressão, muitas vezes disfarçada, impede-nos a leitura da profunda melancolia que vai se enraizando lentamente na alma.

E assim esse solitário violeiro, caminhando e cantando numa palavra só, vagando a pé e pó, decidindo se ia ou ficava, lá se foi.

Foto destaque de Lăzuran Călin de Pexels


Luciana Helena Mussi

Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected].

Compartilhe:

Avatar do Autor

Luciana Helena Mussi

Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected].

Luciana Helena Mussi escreveu 101 posts

Veja todos os posts de Luciana Helena Mussi
Comentários

Os comentários dos leitores não refletem a opinião do Portal do Envelhecimento e Longeviver.

LinkedIn
Share
WhatsApp
Follow by Email
RSS