Nós, com mais de 60 anos, nesta pandemia, somos considerados os velhos, os do “grupo de risco”, os alvos dos preconceitos.
A questão parece um paradoxo, uma vez que estamos cansados de saber que somos cidadãos idosos, que fazemos parte da grande parte da população de velhos brasileira e que, segundo o Estatuto do Idoso (Lei 10.741 de 2003), temos alguns direitos constitucionais. Este título, no entanto, é uma provocação que fazemos, para que haja reflexão sobre a situação da velhice no Brasil em tempos de pandemia.
Maria Teresa, 89 anos, nasceu em Piratininga, casou-se com Pedro e teve oito filhos. Criou todos com muito esforço e dedicação. Relata que tem muitas alegrias e uma delas é receber os filhos(as) e netos(as) em sua casa aos domingos que é seu dia “especial”. Diz ainda – Como é gratificante olhar o passado e constatar a força minha e do meu marido nessa luta.
Hoje, “velha”, com sonhos e com uma vida de incumbências diárias. Parece reforçar o que diz Amor Towles, no seu livro “Um cavalheiro em Moscou” (editora Rocco, 2018).
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À medida que envelhecemos, somos obrigados a encontrar conforto na ideia de que levamos gerações até um mundo de vida desaparecer. Conhecemos as canções preferidas de nossos avós, mesmo que nunca tenhamos dançado.”
Ademar Penteado, de 65 anos, mora no interior de Minas Gerais e é atualmente viúvo. Quando sua esposa faleceu tinha 5 filhos, duas meninas e três meninos. Comenta que não quis saber de casar novamente e educou sozinho seus filhos. Esta realidade foi se fortalecendo à medida que construía uma relação significativa com os filhos, exigindo cuidados desafiadores e difíceis. Com essa idade, Ademar relembra as histórias de sua família, contornando os problemas e as soluções adequadas às circunstâncias.
Todos os “causos” que Ademar lembra, trazem o imenso calor de relações verdadeiras, “lambuzadas” de empecilhos resolvidos, estabelecendo vínculos, sustentando com amor a vida de cada filho com duplo papel Pai/ Mãe. Essas lembranças podem ser associadas às do escritor Raduan Nassar, em seu livro “Lavoura Arcaica”:
… É na memória do avô que dormem nossas raízes, no ancião que se alimentava da água e sal para nos prover de um verbo limpo…”
Angelina Souza, de 69 anos, casada, com uma filha do atual marido e três filhos do marido anterior (já falecido). Ela costurava em uma loja para noivas e nos finais de semana recebia a família para celebrar a vida… Suas costuras, seus bordados, eram impecáveis, tanta era sua entrega ao confeccioná-los! Sempre preocupada com a perfeição daquilo que fazia. Eram verdadeiras obras de arte. Vale aqui a expressão de Virgínia Woolf, no seu famoso livro “Orlando” (editora Nova Fronteira, 1980)
… Assim pode se sustentar o ponto de vista de que são as roupas que nos usam e não nós que as usamos.”
Cada um de nós é uma história contida em várias outras, que estão enroladas em outras histórias. Algumas conseguimos relatar, escutá-las ao contar e recontar novamente. Outras não teremos tempo ou coragem para contar e nem mesmo para sentir suas ressonâncias dentro de nós.
Enfim! Somos seres de narrativas, pois somos de natureza humana, tanto que envelhecemos como testemunhos dos acontecimentos desse mundo.
Chegar à velhice é um ato ou vários atos de coragem e sabedoria. Não possuímos o controle de saber até onde chegaremos, se há algum lugar para chegar. Nós, com mais de 60 anos, neste momento de pandemia, considerados “grupo de risco” somos os mais suscetíveis ao perigo, aos preconceitos e ao confinamento solitário.
Nesta quarentena que se iniciou em meados de março, completando agora, 60 dias, nos deparamos com o inexplicável, com o pânico, com mudanças nos hábitos, mudanças no nosso interior, enfim, mudanças! Diariamente somos informados pela mídia do número de óbitos ocorridos… nessas informações a grande maioria é constituída de velhos e velhas.
É preciso lembrar também os vários preconceitos que acompanham os velhos. Acontece em uma entrevista de emprego – sempre os mais novos são os escolhidos. Há preconceito em relação ao seu corpo em transformações; preconceito contra sua falta de memória; preconceito ao seu andar vagaroso ao caminhar nas calçadas, à sua pouca produtividade etc.
Na própria família encontramos também os preconceitos, desde a falta de habilidades para lidar com a internet, a resistência em fazer mudanças, enfim, preconceito ao nos considerar seres irrelevantes, como nos alerta Yuval N. Harari, em seu recente livro “21 lições para o século XXI”.
Voltando ao título deste texto, a morte dos velhos em nossa pandemia fez deles nada mais que números, algarismos que têm crescido assustadoramente sem vislumbre de limites. Até o processo de luto é feito sem velórios. A despedida é negada. O último olhar que comunica a despedida multiplica a distância. O significado do adeus é negado e imposta uma escolha, que nada apresenta para escolher.
Nesta perspectiva só existe a grande violência da pandemia, a falta de recursos para minimizá-la, sequer o cuidado com a dor, com a saudade, com os afetos.
O enterro dos nossos velhos é apenas de caixões, que às vezes são trocados. A solidão dos que ficam dói, esquece-se que o velho que morreu era de carne e osso, tinha uma história de sonhos e desejos. Estes nossos mortos de hoje não são fantasmas, abstrações, construíram famílias, colocaram filhos no mundo, tiveram netos, amigos. Muitos deles deixaram livros escritos, cantaram, dançaram, ouviram queixas de filhos, deram “conselhos”, fizeram inúmeros sacrifícios…
A morte de nossos velhos nos deixa com um buraco, um vazio, em nosso coração. O vazio é profundo, estressa nossos sentidos e nossa vitalidade.
Atualizado às 13h20