Que velha serei… Desejos!

Que velha serei… Desejos!

Tenho reconhecido nos velhos dos quais cuido que a velhice é um grande encontro consigo mesmo, e me pergunto: que velha serei?

Érica Barros Malta (*)

 

Há sete anos me vi entrando em uma realidade, na qual, de maneira muito natural, já estava inserida, mas que nunca tinha parado para pensar ou até mesmo analisar – a velhice e o processo de envelhecimento. Tem sido bastante custoso pensar no meu processo de envelhecimento depois que comecei a trabalhar em um residencial para idosos, uma vez que o processo de envelhecimento sempre foi algo natural em minha vida, que estava presente nos velhos da família, em amigos, conhecidos e que ao meu ver, sempre foi um processo normal, que faz parte da vida.

No meu viver, pude reconhecer que o envelhecer é uma mudança muito grande para qualquer indivíduo. Algumas vezes vivida com rupturas bruscas como perdas cognitivas ou físicas, mas em outras vezes o envelhecimento veio como continuidade, sem grandes rompimentos, mas como uma simples sucessão de dias, meses, anos. O que eu via, era uma rotina de vida, tudo sempre igual, nada muito diferente, mas sempre com uma valorização por parte da família muito grande, um reconhecimento da bagagem de vida, da sabedoria ganha nestes longos anos de vida.

Trabalhar em um residencial me trouxe uma visão nova, um novo ângulo, que muitas vezes é um mais sofrido, mais doído, que pode estar relacionado ao momento que a sociedade passa hoje de não conseguir mais cuidar de seus velhos em casa, seja porque ele tem demandas que muitas vezes são patológicas, seja por requererem cuidados que uma família não está, ou não se sente apta à prestar, ou simplesmente, não quer estar junto nessa vivência.

E então chega o momento da tomada de decisão: institucionalizar o velho. De uma maneira geral, essa decisão pode ser muito benéfica, tranquila, ou muito sofrida para a pessoa que passa por isso. Se para um adulto jovem os processos de mudança já não são fáceis, para o velho pode ser ainda mais difícil por conta do enraizamento, dos hábitos, dos costumes que se perdem de um dia para outro, sem levar em conta suas histórias, momentos ou tradições.

Ele se vê em uma casa nova, mas que não é a dele, sem sua privacidade, afinal, outras pessoas também moram lá, isso sem falar das equipes, das visitas, do ritmo próprio da instituição. Nisso, o que era próprio, pessoal, acaba se perdendo. Novas rotinas e ritmos se estabelecem e surge então um novo momento da vida deste velho. Acompanhar estes processos de moradia em um residencial, sejam eles por causas patológicas ou não, tornou-se para mim muitas vezes doído, sofrido e muitas outras vezes riquíssimo, e requer uma delicadeza de olhar que não é fácil, e não é ensinada nos bancos escolares.

Você passa em um só dia por variados processos de envelhecimento, o que envelhece de maneira saudável, o que pela manhã conversa com você de maneira conexa e à tarde nem se lembra quem você é, o que nunca soube quem você é, enfim, uma variedade de pessoalidades e momentos.

É a partir dessa vivência que vem a pergunta: Como eu quero envelhecer? Que velha serei? Esse é um desafio que se impõe, que se coloca a mim diariamente, alguns dias de maneira mais suave, mais gentil e em outros dias de maneira mais agressiva, mais bruta.

Antigamente o meu desejo, e pedido a Deus, era que eu pudesse ser longeva, mas quando pedia essa longevidade, em minha cabeça estava subentendido qualidade de vida, e hoje entendo que longevidade nem sempre vem acompanhada de saúde, autonomia ou, como eu gosto de pensar, de qualidade de saúde e vida.

Então surge aqui o meu primeiro desejo para a minha velhice em andamento. Não quero ser longeva, quero anos de autonomia, de saúde, de liberdade, não importa se forem poucos, mas que sejam de muita qualidade, mas se chegar a hora de me deixar ser cuidada, que seja por cuidadoras (pacientes, delicadas e tranquilas) e por meus filhos. Sim, esse é meu desejo, meus filhos cuidando de mim, dando risadas das minhas sandices, dando-me colo, acariciando-me, atendendo a meus desejos e me levando para passear, para viver, não importa o meu estado físico ou mental, que seja divertido. Quero ser cuidada e respeitada por eles para saber se eu os ensinei a cuidar e respeitar o outro, não importando se o outro é a mãe que eles conheceram, ou se me tornei outra pessoa no mesmo corpo agora envelhecido.

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O meu segundo desejo está relacionado à aceitação do meu envelhecimento quanto a registro corporal, aquele que fornece as características de idade avançada: cabelo branco, ou calvície, rugas etc. Eu desejo assumir essas marcas da vida, porém com muito bom gosto e beleza que elas podem sim me trazer, continuar vaidosa, mas sem perder o que se me apresenta (MESSY, 1999, p. 25).

Algumas muitas vezes me pego pensando se o envelhecimento é um privilégio ou um problema. E acredito a cada dia que passa que o envelhecimento é um processo único e exclusivo de cada pessoa, mas ao mesmo tempo é um fenômeno familiar, visto que em geral ninguém passa por ele sozinho.

Mas voltando aos meus desejos, lembrei-me que adoro comer, beber, viajar, viver, então meus filhos e cuidadores não me privem destas alegrias, e me desculpem, mas eu não acredito que elas possam abreviar meus dias de existência, ou melhor de vida. E por falar em existência, a mim não basta existir, tenho que viver, e viver significa aproveitar (a vida) no que ela tem de melhor, então, nada de me encher de tubos e aparelhos que tentarão manter meu corpo funcionando, sem que eu possa sair de uma cama.

A morte nunca foi um problema para mim, eu a vejo como parte desta vida, e confesso que tenho muita curiosidade para conhecê-la (no momento certo claro). Me lembro de ler certa vez uma definição que muito me toca sobre a morte. Dizia que se a morte for um encontro com os que já se foram será uma grande alegria, mas se for como uma noite de sono da qual não nos lembramos de nada, também será bom. Voltando para o envelhecimento, tenho reconhecido nos velhos dos quais cuido que a velhice é um grande encontro consigo mesmo, e só participa deste encontro quem está aberto a colher verdades doces e amargas.

Quero acolher a velhice em meu dia a dia de maneira natural, como quem acolhe os acontecimentos de cada dia, que eu possa colher o meu envelhecimento cotidiano como quem colhe frutos de uma árvore, e que depois de colhidos eu os possa saborear e agradecer por eles. Que eu possa viver com liberdade a experiência que estes anos me trouxerem, já que a jovialidade não é rica em experiência como afirma Pinsky (2003, p.7): “Se o jovem tem a pele mais lisa e mais vigor, perde em experiência e em tolerância, e mesmo o mito da criatividade exclusivamente juvenil, pode ser questionado por homens que fizeram suas descobertas ou criaram suas obras já na velhice, como Goethe, Leonardo da Vinci e mesmo Albert Sabin”.

Para mim a velhice ou a palavra velho não vem com o sentido de descarte, algo que não serve mais, ou até mesmo de algo estereotipado e preconceituoso como vemos em muitas pesquisas científicas que tentam definir este processo.

Neri (1991), assinala que “o que há em relação ao que significa ser velho no Brasil são opiniões. E muitas. De leigos e profissionais. Se quem responde à questão tiver uma pitada de informação ou de sofisticação intelectual, poderá repetir Simone de Beauvoir (1970), e dizer que o velho brasileiro vive uma situação de escândalo. Poderá apoiar-se no discurso sociológico para indicar a situação de marginalidade a que o sistema econômico lança seus membros não produtivos; […] Apoiado num discurso antropológico, nosso informante um pouco mais sofisticado poderá referir-se aos efeitos da urbanização e da industrialização sobre o status do velho, lembrando que em sociedades primitivas, ele merece mais consideração do que nas que viveram ou vivem o processo de modernização (p. 32. Grifos da autora).

Penso em uma definição para velho, mais como a de continuidade, um processo natural de vida e que se depender dos meus desejos, será um momento de frutificar, amadurecer, saciar a outros e de poda, tudo isso para gerar vida em quem estiver próximo, e a quem se dispuser a estar e ser comigo em minha velhice.

Referências
MESSY, J. A pessoa idosa não existe. Uma abordagem psicanalítica da velhice. Tradução: José Souza e Mello Wernek. São Paulo: ALEPH, 1999.
NERI, A.L. Envelhecer num país de jovens. Significados de velho e velhice segundo brasileiros não idosos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991.
PINSKI, J. (Org.).12 faces do preconceito. São Paulo: Contexto, 2011.

 

(*) Érica Barros Malta – Graduada em Enfermagem pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; Pós-Graduada em Gerenciamento em Enfermagem pelo Centro Universitário São Camilo; Aperfeiçoamento em Gerenciamento e Liderança na Enfermagem pelo Fator RH; Com Experiência profissional na Associação da Medula Óssea AMEO, Hospital Santa Isabel clínica médica cirúrgica. Enfermeira Responsável Técnica no Lar Sant’Ana (Alto de Pinheiros) desde 2013. Supervisora de Enfermagem do Lar Sant’Ana (Alto de Pinheiros e Butantã) desde 2017. Texto escrito no curso de extensão Fragilidades na Velhice: gerontologia social e atendimento, ministrado pela PUC-SP no segundo semestre de 2018. E-mail: [email protected]

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