Paul Auster: a velhice na Terra do Câncer

Paul Auster: a velhice na Terra do Câncer

Ninguém pode ser reduzido à sua doença, seja epilepsia ou câncer.


Paul Auster e Siri Hustvedt compartilham uma vida dedicada à literatura há 41 anos. Em meio a influências mútuas, somam também mais de 40 livros publicados, vertidos para mais de 40 idiomas. Ano passado, Paul adoeceu: ele enquanto paciente, aos 76, e ela enquanto acompanhante, aos 68, passaram a viver onde denominaram Terra do Câncer.

Em seu Instagram, Siri fez algumas postagens sobre a vida nesse “país”: escreveu sobre velhice em que se situam. Traduzimos aqui:

11/03/2023

Estive fora do Instagram por um tempo. Isto porque, em dezembro, meu marido, há vários meses doente, foi diagnosticado com um câncer. Ele está fazendo seu tratamento no Sloan Kettering, em Nova Iorque, e eu tenho vivido onde denominei Terra do Câncer.

Muitos adentraram suas fronteiras, seja porque adoeceram, seja porque amam algum enfermo – pai, filho, cônjuge ou amigo. O câncer é diferente para cada um que dele padece. Todos os corpos são semelhantes e nenhum é igual.

Alguns sobrevivem, outros morrem. Mesmo que isso seja sabido, viver próximo à verdade transforma o cotidiano.

A intimidade com outra pessoa não é uma experiência de paralelismo, não é como duas linhas seguindo uma só direção, sem se cruzarem. A intimidade é um diagrama de Venn dinâmico – se tal coisa for possível –, com sobreposição de círculos, que se movem e modificam com o tempo. É um “eu” e “você” animado, que é também um “nós”.

Acho que seria terrível estar sozinha na Terra do Câncer.  Viver com um paciente oncológico, bombardeado com quimio e imunoterapia, é uma aventura de proximidade e separação. É preciso estar perto o suficiente para sentir os tratamentos exaustivos quase como se fossem seus, e longe o suficiente para ajudar de forma genuína. Muita empatia pode te inutilizar. Claro que não é fácil andar sobre essa corda-bamba, mas é o verdadeiro trabalho do amor.

11/04/2023

Em primeiro lugar, agradeço a todos que me enviaram mensagens gentis ao lerem minha postagem sobre o câncer de meu marido. Estas proporcionaram genuíno conforto, embalsamando a inevitável solidão que nos acomete quando ente querido adoece.

Ninguém pode ser reduzido à sua doença, seja epilepsia ou câncer. Também nenhuma doença pode ser separada da pessoa que a sofre. Esta é parte de sua história de vida, e a vida está sempre mudando.

Esta foto foi tirada último domingo pelo fotógrafo e genro de meu marido, Spencer Ostrander. Paul está vivendo um ciclo de tratamentos de infusão para seu câncer, incluindo quimio e imunoterapia. Fotografia é a arte do instante, é uma repetição no tempo, que nunca recuperaremos ou reviveremos. Aquele momento, em que ele estava em nosso quintal, sob afiados raios de sol, cobrindo a cabeça quase inteiramente calva, é um dos que sempre guardarei com amor.

30/08/2023
Outro boletim da Terra do Câncer

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Tenho estado em silêncio porque a Terra do Câncer tem sido confusa e traiçoeira. Eu e o enfermo temos prosseguido na estrada, nos atrasado, rodado em círculos… Não chegamos à placa que marca a fronteira: “você está saindo da Terra do Câncer”.

É um país grande, maior do que eu pensava. Há muitas pessoas velhas e de meia idade aqui; também crianças, que não vemos por habitarem lugares separados. Meu marido e eu temos visto muitos jovens, que sentam conosco nas salas de espera. Seus rostos sem rugas e seus corpos vigorosos muitas vezes não revelam as marcas da enfermidade; às vezes, chapéus cobrem suas cabeças calvas – o único sinal de que estão doentes.

E é pior para eles. Paul já tem muitos anos atrás de si: infância, juventude, meia idade e entrada na velhice. Ele escreveu muitos livros. Um romance que terminou doente, Baumgartner, será publicado em novembro – é um livro pequeno, tenro e milagroso.

Eu vivi quarenta e dois desses anos de escrita com ele.

Mês passado, esperávamos uma consulta quando Paul saiu para pegar um chá e uma jovem o reconheceu. Ela disse que sua esposa é uma grande leitora de sua obra, e que ela mesma havia começado alguns de seus livros. Disse que estava no estágio IV. Disse com um sorriso: “acabei de voltar da Itália. Estou vivendo a minha vida”. Disse: “estamos pensando em você o tempo todo. Que Deus te abençoe”. Ele voltou, se sentou ao meu lado e começou a chorar.

Pode ser tentador considerar a Terra do Câncer um país fatigante, triste e perigoso, onde ninguém realmente vive, apenas espera; um país-limbo de consultas, testes, medicamentos, exames e infusões que devem ser suportados até que o paciente seja encaminhado ao paraíso da vida ou ao inferno da morte. Mas isso é um erro. A jovem disse: “eu estou vivendo a minha vida”.

Observando Paul, entendi como é a graça sob pressão. Forte, sem reclamar, com o humor intacto, ele fez desse período doente – que perdura há quase um ano – algo que não é horrível, mas bonito.

Ele enfrentou uma série de sintomas miseráveis – tanto do câncer quanto do seu tratamento – com uma dignidade espantosa. Ele disse que, à medida que decorre seu julgamento, permaneceu “olhando ao abismo”, e não tem medo de morrer. Eu tenho, então ouvir isto me humilha. Testemunhamos juntos diferentes reações de conhecidos à sua provavelmente fatal doença: revolta, arrependimento e pânico.

Suspeito que seria impossível saber como alguém reagiria. Não conseguiria prever a minha própria reação, tampouco culpar alguém pela respectiva. Enfim, presenciei uma maravilha, e sou grata. Ele também disse que não deseja esconder seu câncer, e permitiu que eu falasse da minha experiência.

A jovem que abordou Paul na sala de espera está correta. Isto é a vida – não a suspensa, a própria. É possível que eu nunca tenha me presentificado tanto quanto agora, com Paul. Conversamos, contamos piadas, comemos boa comida, e ele está aqui, comigo, e ele está vivo agora, e nós aproveitamos o dia como ele é, com suas restrições e limitações. No portal do hospital acompanhamos os dados sanguíneos, gráficos ascendentes ou descendentes. Leio artigos médicos buscando pistas. Isto continua. Há temor e há esperança.

Algo ficou claro:  eu e Paul não podemos sentir isso tudo sozinhos, e a gentileza é importante. O sorriso da recepcionista é importante. O toque respeitoso da técnica que levanta o braço do paciente e o prepara para a injeção é importante. A escuta cuidadosa da enfermeira e do médico é importante. As mensagens e ligações de amigos são importantes. Esses atos podem não alterar o curso da doença, mas são cruciais para vivê-la.

Sigamos…


Paula Akkari

Paula Akkari é psicóloga (CRP 06/178290) formada pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social na mesma instituição e pós-graduanda no Instituto Dasein. E-mail: [email protected] Instagram: @akkari.psi "

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Paula Akkari é psicóloga (CRP 06/178290) formada pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social na mesma instituição e pós-graduanda no Instituto Dasein. E-mail: [email protected] Instagram: @akkari.psi "

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