Onde estão as pessoas idosas negras na publicidade brasileira?

Onde estão as pessoas idosas negras na publicidade brasileira?

Pessoas idosas negras são sub-representadas na publicidade brasileira, quando levamos em conta a proporção desta população no país

por Amanda Cristina de Oliveira (*)


Antes de começar com a leitura, pare por um instante e tente se lembrar de um anúncio publicitário com personagens idosos negros que você tenha visto recentemente. Um comercial na TV, um anúncio de revista, um outdoor… É difícil, não é mesmo? Isso acontece porque estudos já comprovaram que pessoas idosas negras são sub-representadas na publicidade brasileira, quando levamos em conta a proporção desta população no país.

Uma pesquisa realizada pela ONU Mulheres e Aliança Sem Estereótipos analisou peças publicitárias de 425 anunciantes, veiculadas entre julho e dezembro de 2021 na TV e no Facebook, e identificou que apenas 7% das empresas traziam personagens com mais de 60 anos em seus anúncios [1]. Dos 338 comerciais de TV desta amostra, apenas 11% dos homens idosos eram negros e somente 4% das mulheres idosas eram negras.

Para Virpi Ylänne, pesquisadora das representações de pessoas idosas na mídia, a falta de personagens mais velhos nos produtos midiáticos é um fenômeno global, apontado por estudos sobre o tema feitos em diversos países. A autora acredita que tal escassez pode ser entendida como uma forma de discriminação: “parece que, na maioria dos contextos, a discriminação contra a velhice na propaganda é evidenciada pela ausência de personagens nesta faixa etária, especialmente mulheres” (2018, p. 97).

No caso da velhice negra, os dados se agravam, pois há uma intersecção entre dois grupos que historicamente sofrem com a invisibilidade midiática: os negros e os idosos.

A sub-representação dos negros na publicidade foi chamada pela pesquisadora Clotilde Perez de “apartheid publicitário”, em um artigo no qual analisou anúncios veiculados pela revista Caras. Em seu estudo, Perez identificou 993 anúncios em 12 edições da revista, publicadas de abril a junho de 2011, e apenas 13 deles traziam personagens negros, um resultado que a autora considerou “uma vergonha nacional” (PEREZ, 2011, p. 82). Para nós, vale ressaltar que, dos 13, somente dois continham personagens idosos, ou seja 0,2% da amostra total.

Sueli Carneiro, filósofa e ativista do movimento negro, defende que há um dispositivo de racialidade instaurado na sociedade brasileira, que opera para manter a hegemonia branca por meio do apagamento das pessoas negras. Para Carneiro, com base em leituras de Foucault e Charles Mills, o dispositivo é formado por uma série de elementos e pela rede que se estabelece entre eles, o que inclui “ditos, não ditos e a proliferação de discursos associados à racialidade” (2023, p. 37). Ou seja, a própria ausência (não ditos) dos personagens negros na publicidade é um traço a ser destacado, pois tais omissões “promovem a inscrição de indivíduos e grupos no âmbito da anormalidade, na esfera do não ser, da natureza e da desrazão, contribuindo para a formação de um imaginário social que naturaliza a subalternidazação dos negros e a superioridade dos brancos” (CARNEIRO, 2023, p.  14).

Compreendida a barreira da sub-representação dos idosos negros, me interessava entender como ocorre a representação da velhice negra quando ela surge na publicidade: quem é o idoso negro presente nos anúncios, quais são os estereótipos mais recorrentes, quais mensagens são transmitidas etc. Por isso, em minha pesquisa junto ao Portal do Envelhecimento e ao Itaú Viver Mais, analisei 70 peças publicitárias em vídeo com pessoas negras com mais de 50 anos [2] dentre seus personagens, veiculadas entre 2020 e 2023.

Para este estudo, foram observados diversos indicadores em cada um dos 70 anúncios da amostra, usando uma metodologia de pesquisa chamada análise de conteúdo, que observa e categoriza os elementos que compõem determinada narrativa. Dentre os aspectos observados nesta amostra estão componentes que nos permitem um olhar mais geral para as representações da velhice negra na publicidade como a idade aproximada do personagem idoso, seu gênero e o tom de sua pele.

A velhice negra na publicidade brasileira – linhas gerais

Com relação à idade, uma vez que não é possível saber exatamente quantos anos cada ator tem, a categorização foi feita com base na percepção das características físicas, especialmente na presença de rugas e o volume de cabelos brancos. Assim, a maior parte dos idosos negros da amostra foi classificada dentre as faixas etárias mais baixas, com poucos sinais de envelhecimento: 56,5% entre 60 e 69 anos e 19,6% entre 50 e 59 anos. A minoria dos personagens apresenta rugas mais numerosas e cabelos mais brancos: somente 23,9% dos personagens foram categorizados com idade superior a 70 anos.

Com este primeiro dado, podemos inferir que a velhice negra é representada por meio de personagens com poucos sinais de envelhecimento. A preferência dos anunciantes é por uma aparência menos envelhecida, mais relacionada às faixas etárias iniciais do processo de envelhecimento. E, mesmo entre as faixas etárias mais altas, percebe-se uma preferência por celebridades (dentre os oito anúncios com protagonistas acima dos 70 anos, quatro traziam uma pessoa famosa no meio do entretenimento).

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Em termos de gênero, as idosas negras estão presentes em mais da metade dos anúncios da amostra: 55,4%, sendo que em 5,4% elas surgem ao lado de um parceiro, como integrantes de um casal de idosos. Os idosos negros, sem fazer parte de um casal, representam 44,6% da amostra. Apesar da pesquisa quantitativa mencionada no início deste artigo mostrar uma ausência maior para as idosas negras, nossa amostra trouxe um dado diferente neste indicador, demonstrando que esta ainda é uma questão que requer aprofundamento das reflexões sobre o que a idosa negra representa no universo midiático.

Por fim, no que diz respeito ao tom da pele, pouco mais da metade das peças (50,7%) trazem personagens com tons mais claros de pele e o restante, 49,3%, são personagens com a pele mais escura. Enquanto há um certo equilíbrio neste quadro geral, dentre os idosos negros que são protagonistas do anúncio (35, no total), a maioria tem tons de pele mais claros (20 anúncios), demonstrando que, geralmente, posições de destaque são ocupadas por negros de pele mais clara.

Este fenômeno pode ser explicado como um efeito do colorismo, ou seja, do “apagamento e silenciamento de representações midiáticas de indivíduos negros de tonalidade de pele mais escuras” (LEITE, 2019, p. 44). Considera-se o colorismo como uma forma de racismo, uma vez que por meio de representações deste tipo, cria-se um padrão racial que valoriza determinados tipos de características em detrimento a outras.

Portanto, em linhas gerais, a velhice negra na publicidade brasileira favorece imagens de mulheres, com sinais pouco evidentes de envelhecimento e tons mais claros de pele, indicando a busca por um determinado padrão estético pelos anunciantes: com velhos não tão velhos e negros sem a pele retinta.

E como se desenvolvem as representações? Que estereótipos trazem, quais mensagem transmitem? Como a questão racial se manifesta? Esses são temas complexos demais para um único artigo! Mas, em breve, traremos mais detalhes sobre estas questões.

Notas
[1] Os dados do Censo Demográfico 2022 apontam que a população com mais de 65 anos representa 10,5% do total. Ou seja, se 7% dos anúncios trazem personagens idosos, existe uma lacuna que ainda precisa ser preenchida.
[2] A opção por analisar anúncios com pessoas com mais de 50 anos, faixa que não compreende os parâmetros oficiais da OMS para designar uma pessoa como idosa, deu-se com base no critério descrito na pesquisa “Envelhecimento e Desigualdade Raciais”, realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que justificou a ampliação da amostra por considerar o envelhecimento como um processo que não se inicia no momento em que um indivíduo completa 60 anos. A publicidade e as percepções do envelhecimento fazem parte deste processo, influenciando-o e, por isso, optei por incluir esta faixa etária no corpus da pesquisa.

Referências
CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de Racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
ENVELHECIMENTO e desigualdades raciais. São Paulo: Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, 2023. Disponível em: https://cebrap.org.br/wp-content/ uploads/2023/06/desigualdades_envelhecimento_relatorio.pdf. Acesso em 04 de agosto de 2023.
PEREZ, Clotilde. Condições antropossemióticas do negro na publicidade contemporânea. In: BATISTA, Leonardo; LEITE, Francisco (Orgs.). O negro nos espaços publicitários brasileiros: perspectivas contemporâneas em diálogo. São Paulo: ECA-USP, 2011. p. 61-84. Disponível em: https://www.livrosabertos. sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/392/344/ 1403. Acesso em 04 de agosto de 2023.
YLÄNNE, Virpi. Representações dos velhos e da velhice na propaganda do século XXI. In: CASTRO, Gisela G. S; HOFF, Tânia (Orgs.). Comunicação, consumo e envelhecimento no contemporâneo: perspectivas multidisciplinares. Porto Alegre: Sulina, 2018. p. 95-113. LEITE, Francisco. Para pensar uma publicidade antirracista: entre a produção e os consumos. In: LEITE, Francisco; BATISTA, Leandro Leonardo (Orgs.). Publicidade antirracista: reflexões, caminhos e desafios. São Paulo: ECA-USP, 2019. p. 17-65. Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/ catalog/view/431/382/1517. Acesso em: 04 de agosto de 202

(*) Amanda Cristina de Oliveira – Mestre em Ciências da Comunicação pela USP e pesquisadora das relações entre mídia e envelhecimento desde 2016. É fundadora da Agência Senior Media, que presta serviços de mídias sociais para empresas que têm os 50+ como público-alvo.

Foto destaque de Rdne Stock project/pexels.


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