O papel mortal da desinformação nas pandemias

A desinformação mudou a forma como as pessoas confiavam em seus governos e médicos – e as consequências foram fatais

Cristian Apetrei (*)


Desde que as autoridades de saúde confirmaram os primeiros casos de Covid-19, a desinformação se espalhou tão rapidamente quanto o vírus. As mídias sociais podem até ter feito com que a quantidade, variedade e velocidade da desinformação fossem maiores do que nunca, mas a pandemia de Covid-19 não foi a primeira em que informações falsas prejudicaram a saúde pública.

Durante a pandemia de gripe de 1918, a desinformação alterou a confiança das pessoas nos governos e nos médicos. Também alimentou os movimentos contra a vacina da varíola, no século 19, com alguns dos mesmos argumentos usados hoje sobre a vacina contra Covid-19.

O que diferencia essa pandemia, no entanto, é a magnitude da desinformação que circula em todo o mundo. Os dados mostram que as regiões e os países onde a desinformação mais prosperou experimentaram ondas pandêmicas mais letais, apesar da disponibilidade de vacinas.

O problema da desinformação tem sido tão grande que ganhou uma palavra própria: “infodemia”, mistura de “informação” e “epidemia”. Cunhado pelo jornalista David Rothkopf durante o surto de SARS em 2003, o termo descreve uma situação em que “alguns fatos, misturados com medo, especulação e rumores, são amplificados e rapidamente transmitidos pelo mundo todo graças às modernas tecnologias de informação”.

Como pesquisador que estuda o HIV e viveu a pandemia da AIDS, tive uma sensação de déjà vu conforme a desinformação sobre a Covid-19 se espalhava. Nos 40 anos desde o surgimento da AIDS, a sociedade aprendeu a lidar com a doença com diagnósticos, tratamentos e estratégias preventivas mais eficazes, transformando-a de uma condição letal em uma doença crônica.

No entanto, existem paralelos impressionantes entre as pandemias de HIV/ AIDS e de Covid-19, que mostram as terríveis consequências que a desinformação pode causar, tanto para os pacientes quanto para a sociedade como um todo.

Negando a existência de vírus ou pandemia

Tem gente que nega a existência da Covid-19. Há muitas alegações nas mídias sociais de que o vírus que causa a doença nunca foi isolado ou de que estaria insuficientemente caracterizado. Outros ignoram as graves consequências da infecção.

Em geral, esses grupos tendem a negar também a teoria dos germes, alegando que doenças infecciosas não são causadas por patógenos, como vírus e bactérias. Eles promovem a ideia de que os patógenos não causam doenças, e sim são consequência delas.

Da mesma forma, alguns negaram o papel do vírus HIV na infecção da AIDS. Peter Duesberg, um dos negacionistas da AIDS, foi alguém que disseminou esse tipo de desinformação, refutada pela comunidade científica em geral.

Mas suas afirmações equivocadas chegaram aos ouvidos do então presidente da República da África do Sul, Thabo Mbeki, que proibiu o uso de antirretrovirais que salvavam vidas em hospitais públicos. Essa decisão resultou na morte de mais de 330 mil pessoas por HIV/ AIDS entre 2000 e 2005.

A decisão de Mbeki foi considerada tão prejudicial que cientistas e médicos de todo o mundo assinaram a Declaração de Durban, reiterando que o HIV realmente causa AIDS e instando Mbeki a reconsiderar sua decisão. Quando o governo reverteu a proibição, após forte pressão política internacional, o estrago já estava feito.

Teorias conspiratórias

Experimentos de ganho de função envolvem a manipulação de um patógeno para entender o que contribui para sua capacidade de causar doenças. Mas esses experimentos podem dar aos patógenos novas habilidades, como tornar os vírus mais transmissíveis ou mais perigosos para os seres humanos.

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Os teóricos da conspiração alegaram que o vírus da Covid-19 resultou de alterações em uma versão do vírus presente em morcegos. Alterações que teriam dado a ele a capacidade de se replicar em células humanas. Mas essas alegações ignoram vários fatos importantes, incluindo o de que todos os coronavírus de morcegos podem infectar humanos sem precisar de nenhuma adaptação adicional.

O HIV também foi alvo de teorias da conspiração, como as que alegavam que foi criado em laboratório. A pesquisa mostrou que o HIV também evoluiu naturalmente de animais. Os primatas não-humanos africanos são hospedeiros naturais de um vasto grupo de vírus, chamados coletivamente de vírus da imunodeficiência símia (SIV).

Apesar das altas taxas de infecção por SIV, os hospedeiros primatas normalmente não apresentam sintomas ou progridem para AIDS. Ao longo da história evolutiva do SIV, saltar para uma nova espécie hospedeira envolveu mudanças genéticas que ocorreram naturalmente ao longo de milhares de anos.

Curas milagrosas

Durante uma crise de saúde pública, pesquisadores e autoridades de saúde estão aprendendo sobre uma doença em tempo real. Embora erros sejam esperados, eles podem ser percebidos pelo público como hesitação, incompetência ou fracasso.

Enquanto os cientistas procuravam possíveis tratamentos para a Covid-19, outros ofereciam seus próprios medicamentos não comprovados. Vários tratamentos, incluindo ivermectina e hidroxicloroquina, foram testados e abandonados. Mas não antes de muito tempo, esforço e dinheiro serem gastos para refutar as alegações de que esses tratamentos eram, supostamente, milagrosos.

Ainda que mudanças de diretrizes sejam um processo natural de aprendizado sobre uma nova doença conforme ela se desenvolve, elas podem abrir a porta para a desinformação e minar a confiança da população nos médicos, mesmo quando eles estão cuidando de pacientes infectados.

Prevenindo a desinformação

A questão não é “se”, mas quando e onde uma nova pandemia ocorrerá. Tão importante quanto criar maneiras de detectar vírus emergentes é desenvolver estratégias para lidar com as desinformações que os seguirão. O recente surto de varíola dos macacos já teve uma disseminação semelhante de desinformação sobre sua origem e disseminação.

Combater a desinformação é difícil, porque existem outras razões, além da ignorância, para que alguém acredite em informações falsas. Nesses casos, apresentar provas pode não ser o suficiente.

Concentrar-se apenas nas necessidades científicas e médicas urgentes, excluindo o tratamento rápido da desinformação, pode inviabilizar o controle da pandemia. Estratégias que combatam as informações falsas podem ajudar no sucesso de outras medidas de controle da doença.

(*) Cristian Apetrei é professor de imunologia, doenças infecciosas e microbiologia na University of Pittsburgh Health Sciences. Texto reproduzido do FastCompany-Brasil.

Foto destaque de Kindel Media/Pexels


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