O inominável, em três atos: encantos e desafios de uma experiência intergeracional

Artigo relata experiência de sensibilizar e capacitar jovens em situação de vulnerabilidade social, vinculados à Ong Projeto Quixote/Unifesp, em favor da temática da velhice e do envelhecimento para que, em um futuro próximo possam trabalhar, como voluntários ou em emprego formal, como agentes socioculturais junto ao segmento idoso, reinventando, assim, seu presente e futuro.

Sonia Fuentes *

 

o-inominavel-em-tres-atos-encantos-e-desafios-de-uma-experiencia-intergeracionalEste artigo relata algumas experiências dentro do meu projeto de pós-doutoramento no Programa de Gerontologia da PUC-SP, quanto a sensibilizar e capacitar jovens em situação de vulnerabilidade social, vinculados à Ong Projeto Quixote/Unifesp, em favor da temática da velhice e do envelhecimento para que, em um futuro próximo possam trabalhar, como voluntários ou em emprego formal, como agentes socioculturais junto ao segmento idoso, reinventando, assim, seu presente e futuro.

A pesquisa, iniciada em 2016, é supervisionada pela professora Flamínia Manzano Moreira Lodovici, vice-coordenadora do Programa de Gerontologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A seguir, cenas exemplares de tais encontros intergeracionais, em que jovens do Projeto Quixote e uma idosa com doença de Alzheimer, ora em roda de conversa, ora em passeio, dialogam entre si e com a psicóloga-orientadora:

Cena 1

Obras de arte – uma série de imagens (1) de senhoras idosas, imagens essas extraídas na tese de doutorado desta psicóloga, são mostradas ao grupo de jovens.

Uma das jovens indaga: ―Mas por que usar essas imagens e não fotos dessas senhoras?

A utilização das imagens é uma forma diferente, criativa, de simbolizar a presença humana àqueles jovens, visto que, em cada uma das imagens, eles podem identificar algo peculiar de cada pessoa ali representada: um sorriso contido ou franco, um jeito de olhar enviesado, de torcer a boca, um certo penteado, os óculos postos em uma determinada altura do nariz – como uma marca reconhecível da particularidade de cada idosa – um símbolo tal qual um arquétipo da velhice, digamos assim.

o-inominavel-em-tres-atos-encantos-e-desafios-de-uma-experiencia-intergeracionalE instigados a refazerem tal exercício, os jovens são convidados a atentarem-se a tais imagens, para resposta à indagação:

― O que essa imagem representa a vocês? E as respostas são diversas: ― Ah! Essa tem cara de quem está bem triste, deprimida até! ― Olhar cansado e abatido. ― Essa tem cara de quem foi brava e chata durante a vida inteira. ― Essa é doce e leve como uma pena. ― Nossa!, essa tem cara de malvada. ― Essa outra mostra um grande sofrimento no olhar. ― Essa é a candura em pessoa.

E, assim sucessivamente, iam os jovens se manifestando. Aos jovens, é explicado que, muitas vezes, uma obra de arte, assim como uma música, um filme, um livro, um desenho, conseguem expressar, traduzir algo que, não necessariamente, se deixa, ou se quer definir, qualificar, ou explicar verbalmente, dada a sua simbolicidade: o próprio objeto furtando-se à nomeação, como se sua intempestiva emergência fosse suficiente para o entendimento do observador – algo que se diria inominável.

Segundo os filósofos Deleuze e Guattari, a obra de arte é tudo aquilo que condensa sentimentos, percepções, sensações de seu criador, que afetam o observador, pela sua marca maior, o novo, o devir que suscita. A arte expressa aquilo que autor e observador não podem ou não querem dizer, excetuando-se evidentemente os analistas cuja tarefa é justo romper o inominável, explicá-lo.

Cena 2

Tábata tem 15 anos. Suelen, 86. Entre muitas diferenças, 71 anos as separam. Diferenças físicas marcantes as retratam: na idosa, o peso da vida é visto num corpo quase ereto, cabelos branquinhos, voz gasta, passo lento e cambaleante, calos nas mãos, rugas expostas, e olhar cansado, não escondem a força de uma guerreira que não se intimida em mostrar garras de leoa ― a força de uma idosa que, apesar da idade avançada, e das perdas ocorridas em sua vida, tem um viço invejável no rosto.

o-inominavel-em-tres-atos-encantos-e-desafios-de-uma-experiencia-intergeracionalSua pele rosada, oxigenizada, resulta de uma rotina recheada de pequenos afazeres? Correto: Suelen acorda pontualmente às 6h da manhã, se arruma, e parte para atividades que lhe são rotineiras: arruma o quarto, limpa o banheiro, ajeita a casa da filha, os quartos dos netos, e se apronta para ir ao Centro-Dia que vem frequentando. Detesta bagunça, falta de ordem. ― O trabalho não pode ser empecilho para nada – trabalho é parte da jornada da vida. Não podemos reclamar, se temos saúde devemos seguir em frente com ordem e coragem, sentencia essa vigorosa idosa.

De outro lado, a jovem Tábata nas suas 15 primaveras: efusiva, destemida, parece viver sem pressa. O tempo anda a seu favor – tem todo o tempo do mundo a seu dispor. A condescendência, porém, atravanca muitos de seus planos: ―Ah! amanhã tudo se resolve! Suelen, nem por isso, deixa de ser cuidadosa e seletiva com seu tempo.

Assim é que, no encontro marcado para sua orientação aos jovens, reclama: ―Cadê esses meninos que ainda não chegaram para a aula de biscoitos?

Um encontro intergeracional (2) está para selar um compromisso entre ambas as mulheres, de 86 e 15 anos, e envolvendo os demais jovens…

Quem vê de fora pode julgar que esta seja uma meta quase improvável e irreal: será possível atingir esses jovens, no fundo de sua alma, e fomentar neles o desejo de interagir com velhos? O que os faria desacelerar seu tempo juvenil e encarar a lentidão do relógio atemporal, por exemplo, desta senhora que faz espaço, mas sem hora?

O imponderável aí se revela – a união desse encontro acontece sem pressa e com um entusiasmo inesperado. Suelen, nos seus 86 anos, torna-se figura-foco daqueles jovens.

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o-inominavel-em-tres-atos-encantos-e-desafios-de-uma-experiencia-intergeracionalTábata faz parte do grupo de jovens que observam, atônitos, a destreza da idosa na confecção dos biscoitos. Todos cooperam e, como num concerto gastronômico, juntos e em sincronia, amassam, cortam, e enrolam a massa. O vai e vem das formas resulta num mar de iguarias cheirosas, saborosas. O aroma invade a casa, e os presentes encantados fruem sua doçura. No final, um cartão e uma prenda são oferecidos à idosa. Ela retribui com um sorriso. Parece realizada. Mas nada comparado ao abraço coletivo que se segue. Sem combinar, os jovens a cercam e a sufocam de afeto com um abraço gigante. Um encontro de gerações e uma imagem quase inominável!

Cena 3

Passeio no parque.

Férias, Sampa frio, céu azul. ―Vamos a pé, turma? ―Ah! Tá muito frio!

― Andar esquenta, replico a eles. E no caminho, conto-lhes do encontro que está prestes a acontecer: um gerontólogo, uma idosa com Alzheimer e os jovens do Quixote vão se reunir no Parque da Aclimação.

A atividade programada para ambos os grupos: observar flores, folhas, e natureza, com o auxílio de uma lente de aumento. Os jovens se surpreendem. A natureza se mostra generosa. Os patos, as pombas, o limbo, as folhas listradas, e as azaleias colorem o passeio. Tudo se amplia e agora fica mais visível.

Lembro a eles da artista mexicana Georgia O’Keefe: a artista que insiste em pintar as flores em tamanho gigante, ampliadas. Seus quadros são um apelo à observação detalhada. Quando perguntaram a ela: Por que pintar assim tão ampliado?, ela explicou: ― As pessoas têm tanta pressa hoje em dia que não param mais para apreciar a natureza, a beleza das flores. É preciso parar para olhar. Olhar mais devagar…

o-inominavel-em-tres-atos-encantos-e-desafios-de-uma-experiencia-intergeracionalAssim como a obra de O’Keffe possibilita uma parada, um olhar cuidadoso sobre sua obra, a oportunidade de olhar com a lente de aumento, e participar do movimento desacelerado desse passeio, acompanhando o ritmo lento de uma idosa, se torna uma oportunidade única. Uma outra obra se faz quadro: jovens e idosa sentam-se juntos e observam a natureza ― uma imagem inominável.

No final do semestre, pergunto aos jovens se entenderam o que eu quis dizer com a palavra: inominável e, mais uma vez, peço exemplos com frases.

Tábata, a jovem de 15 anos, de pronto responde: ― Eu sou indescritível, sou inominável!

Notas

(1) Imagens que fazem parte do corpo do trabalho da pesquisa de Doutorado já defendida na Psicologia Clínica, PUC-SP (Fuentes, 2015), em que as senhoras velhas da pesquisa desta psicóloga foram representadas por imagens de obras de arte de diferentes artistas: Picasso, Rembrant, dentre outros.

(2) “Sensibilizar, Capacitar e Reinventar”, título do pós-doc de Fuentes, 2016. Sensibilizar e capacitar jovens em vulnerabilidade social a trabalharem como agentes socioculturais em favor do segmento idoso, reinventando seu presente e futuro, é o objetivo de uma experiência intergeracional constante da pesquisa de pós-doutorado desta psicóloga interessada na união dessas forças humanas cronologicamente distintas, cada qual com sua complexidade, sob a abordagem gerontológica, em perspectiva interdisciplinar e com foco social (Lodovici; Silveira, 2011).

Referências

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução Peter Pál Pelbert. São Paulo: Ed. 34, 1997.

DELEUZE & GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34, 1992.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992.

FUENTES, Sonia. Geras Vitallis – um estudo pela compreensão e pelo conhecimento da velhice a partir de uma experiência numa Instituição de Longa Permanência. Tese de doutorado. Programa de Psicologia Clínica da PUC-SP, 2015.

FUENTES, Sonia.“Sensibilizar, Capacitar e Reinventar”. Projeto de pós-doutorado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia/ Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em andamento, 2016.

LODOVICI, F. M. M.; SILVEIRA, N. D. R. (2011). Interdisciplinaridade: desafios na construção do conhecimento gerontológico. Porto Alegre: Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento, v. 16, n.O 2, pp. 291-306. Disponível Aqui. Acesso em 23 julho, 2015.

O’KEEFE, Georgia – Disponível Aqui 

* Sonia Fuentes é Psicologa, Mestre em Gerontologia Social e Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É atualmente pós-doutoranda no Programa de Gerontologia da pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde também é colaboradora e pesquisadora. Tem vasta experiência na área de Medicina Psicossomática, Cinesiologia, com base na Psicologia Junguiana. Trabalha como consultora visando capacitação para pessoas que trabalham e ou convivem com idosos, além de desenvolver Oficinas de Qualidade de Vida e Atêlies Filosóficos para o segmento idoso. E-mail: [email protected]

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