“Minoridade dos velhos”

“Minoridade dos velhos”

Estamos prontos e exercendo um verdadeiro diálogo com aqueles que chamamos de sujeitos na gerontologia, os velhos? Haverá lugar para uma gerontologia dialógica?

Theophilos Rifiotis (*)

Atualmente, a gerontologia defronta-se com uma série de dilemas teóricos e éticos que desafiam os pesquisadores, profissionais da área e as políticas sociais, os quais nos parecem decisivos para consolidá-la. Propomos neste texto apresentar e discutir um deles, o desafio ético da menoridade. Referimo-nos a “desafio” no sentido próprio da palavra, que remete à recusa de uma situação, ou ordem pré-estabelecida. “Desafio” é uma declaração provocadora, como num “duelo”, e está em terreno arenoso e tem futuro incerto… Porém, vale a pena correr esse risco para colocar em questão um dos dilemas atuais que compartilhamos no campo da gerontologia. Trata-se de um primeiro esboço.

Comecemos por um desafio que tem algo de paradoxal, que poderia ser chamado de “minoridade dos velhos”. Não seria exagero dizer que enfatizamos na população idosa a condição de vítima, de excluída, discriminada, carente, pobre, dependente, sem escolaridade, sem voz, nem vez, etc. Sem dúvida, uma parcela importante da população idosa no Brasil vive em condições de extrema carência, e não se pode minimizar este fato. Porém, neste espaço de reflexão, quero chamar a atenção para dois elementos implícitos nesse tipo de discurso gerontológico que podem levar-nos a melhor compreender esse paradoxo e, quem sabe, a superá-lo.

Todos concordamos que tratar a população idosa como vítima, carente, etc faz dela mais um objeto de assistência do que um sujeito social, ainda que o exercício da cidadania seja limitado a certos segmentos sociais. Penso que ao tratarmos os idosos desse modo, ainda que seja com a intenção positiva de “ajudar”, estamos procedendo a uma redução que produz e, o que é mais grave, reproduz uma visibilidade social deteriorada. Fazendo assim, atribuímos uma minoridade aos idosos, e precisamos estar atentos a processos que possam, no limite, infantilizá-los.

Indo mais além nesse desafio, perguntaria: qual é atualmente o lugar da gerontologia e dos gerontólogos, e quais são as suas relações com as pessoas idosas? Eles são sujeitos ou objeto? “Sujeito!”, diremos sem dúvida. A resposta, por vezes, tem algo de “politicamente correta”, ou seja, está racionalmente presente no nosso discurso, mas isso é insuficiente para construir uma nova postura ou estabelecer efetivamente outra relação. Perguntando mais diretamente, podemos considerar que há um verdadeiro diálogo entre gerontólogos e pessoas idosas? A resposta positiva passa não apenas pelo desejo individual, mas por uma compreensão mais profunda dos limites da gerontologia e da nossa própria história.

Hoje nos surpreendemos e, às vezes, sentimos um certo constrangimento com afirmações que há poucos anos nos pareciam tão adequadas e que nos serviram de inspiração e guia de reflexão. Lembremos, por exemplo, o prefácio do conhecido livro de E. Bosi, Memória e sociedade. Lembranças de velhos, no qual Marilena de Souza Chauí escreveu: “O velho não tem armas. Nós é que devemos lutar por ele”. “Esta, acredito, é a tua tese, Ecléa” (CHAUÍ, 1999, p. 18). A essas palavras, proferidas como sincero elogio, segue-se a seguinte explicação de M. Chauí:

Mas se os velhos são os guardiões do passado, por que nós é que temos de lutar por eles? Porque foram desarmados. Ao mostrá-lo, Ecléa, sua tese deixa exposta uma ferida aberta em nossa cultura: a velhice oprimida, despojada e banida. (CHAUÍ, 1999, p. 18)

Francamente, não queremos aqui fazer nenhuma injustiça, minimizando a importância dessa obra ou evocando retrospectivamente limites no passado, e tampouco poderíamos trair a nossa própria história esquecendo o quanto esse livro foi importante para o nosso interesse pela dinâmica dos grupos etários. Porém, relendo hoje estas palavras, cabe a indagação: teríamos avançado em relação àquela visão sobre a população idosa, mudando a nossa postura pessoal e intelectual?

Será que a imagem assistencial reducionista que qualifica a relação que mantemos com essa população em termos de duas metades, “benfeitores” e “necessitados”, está superada? Não parece ser o caso, e por esta razão é oportuno lembrar os “obscuros mecanismos” desta relação que pressupõem a desigualdade, a dívida e a gratidão (CAPONI, 2000, p. 15). Falar no lugar do outro, fazer-se seu porta-voz?! Em termos políticos, há uma indignidade em falar pelo outro, de agir pelo e no lugar do outro. “Falar por si mesmo é a grande lição de Maio de 68”, afirmou G. Deleuze em entrevista ao Jornal Libération, publicada na Folha de São Paulo (1986). Para ele:

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Que os médicos não tenham direito de falar em nome dos doentes e, também, que eles tenham o dever de falar, enquanto médicos, sobre problemas políticos, jurídicos, industriais, ecológicos, isso traduz a necessidade de haver grupos, como queria o movimento de Maio de 68, que reúnam, por exemplo, médicos, doentes, enfermeiros. São os grupos multivocais.

Assim, este desafio poderia ser formulado nos seguintes termos: estamos prontos e exercendo um verdadeiro diálogo com aqueles que chamamos de sujeitos na gerontologia? Haverá lugar para uma, digamos, “gerontologia dialógica”?

Tal questão comporta uma breve reflexão sobre a nossa própria condição de seres envelhecentes, lembrando que a nossa pesquisa não se aplica exclusivamente a um “outro” radical, mas igualmente a nós mesmos. Em termos biográficos, diríamos que houve um dia (há muito tempo!) em que eu era jovem iniciante na gerontologia, hoje, eu continuo iniciante, mas não sou mais jovem, e não posso deixar de trazer a minha reflexão crítica sobre a sociedade para dentro dos meus estudos e do meu próprio processo de envelhecimento.

Em outras palavras, assim como aconteceu com as feministas nos estudos de gênero, nós também vamos modificando as nossas concepções, à medida que vivemos os processos de envelhecimento. A minha postura pessoal e política não me permite aceitar passiva- mente a condição de “objeto” da gerontologia ou vítima, e me exige um enfrentamento de tal situação também no plano pessoal, como um verdadeiro desafio.

Referências
CAPONI, S. N. C. Da compaixão à solidariedade: uma genealogia da assistência médica. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2000.
CHAUÍ, M. Apresentação. Os trabalhos da memória. In: BOSI, E. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
COELHO, P. A velhice deve ser farta de liberdade (republicado de uma “poetisa americana”. Folha de São Paulo, 31/08/94, Ilustrada 5/4.

Leia o artigo completo na Revista longeviver, edição 17. A revista Longeviver é um periódico de disseminação de saberes da área da gerontologia social,  online e gratuito, e que recebe continuamente artigos para publicação.

(*) Theophilos RifiotisProfessor Titular do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador do LEVIS (Laboratório de Estudos das Violências) e do GrupCiber (Grupo de Pesquisa em Ciberantropologia) da UFSC. Este texto “Minoridade de velhos” faz parte da conferência proferida na VII Jornada de Inverno da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (Porto Alegre, 26 de agosto 2005), artigo completo publicado originalmente em Pro-Posições, v. 18, n. 1 (52) – jan./abr. 2007 e cedido pelo autor para publicação na Revista Longeviver, edição 17 (2023). E-mail: [email protected]

Foto destaque de Jan Kopřiva/pexels


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