Meu amigo da Casa Azul

Meu amigo da Casa Azul

Para meu amigo, não havia futuro, nem o saudosismo do passado, todos os tempos seguiam intensamente vividos no presente


Numa manhã de sol frio e ventos gelados, meu amigo Oswaldo atravessou a rua, depois de alguns passos dobrou a primeira esquina à direita, a terceira à esquerda e continuou por várias ruas, a caminhar: ele sempre adorou. Não havia mapa desenhado na memória, ele nunca permitiu; não existia um GPS, seguia uma rota ou destino imaginário. Estava guiado por aromas conhecidos, histórias de amor e palavras de carinho, seus eternos guias. As luzes de todas as ruas que ele já andou agora estavam ali, todas de uma vez, na mesma rua. Não havia como errar o caminho, estava muito claro, tudo brilhava. Certamente estava na Rua da Luz.

Agora exalava-se perfume, Anais Anais, inconfundível. A cada nota, o aroma ligava a memória a uma pessoa, amor, felicidade, prazer e alegria. A rua chegou a uma praia, e cada um dos moradores gritava pelo seu nome. Não estava mais no mesmo tempo, não era o mesmo dia que chegou à rua. Estava no passado, ano de 1982. Logo iniciou caminhadas solitárias pelas areias das praias. Havia pegadas. Eram as dele mesmo, reconheceu. Não estava conseguindo deixar outras marcas na areia.

Continuou: hora seguia os ventos; outras, era tangido por ele. Chegou a uma praia de morros vermelhos e brancos e, sem muito para querer saber sobre o destino, seguiu caminhando. Naquela praia foi deixando seus pés descalços imprimirem novas pegadas nas areias macias e brancas. O vento, o tempo e as ondas por segurança e brincadeira ajudavam a esconder as mais recentes, e a chuva, com a mesma lógica, também preservava. Ninguém conseguia apagá-las, nem mesmo o feiticeiro tempo que transforma e transformou o passado em presente, efemeridades em eternidade.

Os morros arenosos, brancos e vermelhos, da praia também sabem o seu nome, suas histórias e, os dois, juntos, por algumas horas, recontaram muitas delas. Ele também sabe muitos dos segredos escondidos pelo Morro Branco. Aos desconhecidos, amigos e pescadores que encontrava, falava-lhes do cotidiano. Para ele, não havia futuro, nem o saudosismo do passado, todos os tempos seguiam intensamente vividos no presente, naquele dia e a cada encontro finalizava dizendo: “façam tudo que vocês quiserem, vivam intensamente”. As coisas acontecem para ele exatamente à maneira como ele sente cada uma delas, sem interferência externa.

Seus gritos, falas e músicas sempre foram ouvidas e sentidas de forma poética. Ao seu convívio, alteravam-se os batimentos cardíacos e, a estes novos ritmos emocionais de sístole e diástole, nascia outro coração apaixonado: e apaixonou. Logo, juntos, ali na mesma areia, ele e “Benzinho” desenharam suas iniciais, deram-se as mãos, criaram novas rotas e seguiram até um lugar desconhecido aos dois. Mas, havia um nome: território do amor… e caminharam juntos e agarrados, desenhando pegadas em muitas novas caminhadas.

E chegaram a uma casa amarela, em uma rua amarela. Era uma casa que contava histórias e fazia outras. Com ele, meu amigo, a casa contava a história de umas pessoas e de uma cidade que viviam dentro de um vidro de sal-de-frutas. Dentro do vidro não havia a possibilidade de conflitos, não havia tristeza, e os valores eram medidos em risos, os medos, sempre eram controlados, a felicidade sempre incondicional.

E, assim, chegam à maior cidade da América Latina. Colocaram nos seus mapas e “cartas de intenções”, que não poderia haver um só lugar, uma única rua, única casa para conhecer. A alegria havia, em pouco tempo, aumentado. Agora, discutiam, gritavam e amavam a quatro vozes e um latido. A todos ensinou-lhes todas as possibilidades de vida, como escolher caminhos e não se perderem nas ruas. E saiu! Está agora no ponto mais alto da vida e fica observando, dando risadas e protegendo bem do alto, os quatro que ele chama de família.

Adora contar histórias. Uma delas, a última, ele conta que recebeu o convite para morar numa casa azul, na rua azul. Mas, vive em muitos lugares ao mesmo tempo, pois consegue viajar através do tempo, saltando janelas e ultrapassando portas imaginárias. Logo, vive intensamente e simultaneamente em todos os tempos. A lógica da finitude para ele nunca existiu.

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Seria a maneira equivocada de tentar controlar e deixar tudo no “impalpável” passado aprisionado. A esta condição de tempo não se viveria para sempre. Agora, para ele, o tempo flui em dimensões variadas. E em todas as dimensões, formas energéticas e, evoluindo o estado fluido, estará junto da sua “Benzinho” e nunca sairá do presente, até chegarem à Casa Azul, na rua Azul.

Fotos: Alcides Freire Melo

Em tempo: A redação Portal também se despede do querido amigo Oswaldo.


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Alcides Freire Melo

Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: [email protected]

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