Em sua obra, na qual nunca deixou de trabalhar, Gabriel García Márquez, o Gabo, abordou a velhice, morte, doença e sofrimento, os quais vieram à tona durante a pandemia de Covid-19
Gabriel García Márquez (1927-2014), carinhosamente conhecido como Gabo, é um dos mais influentes escritores colombianos, também considerado um dos maiores de todo o século XX. Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1982. Para além das letras – romances, contos e reportagens –, seu legado é engrandecido pela luta pela paz, pelo combate a ditaduras latino-americanas e pela magia que amalgamou à realidade – o que culminou no realismo mágico, movimento artístico em que foi vanguardista.
Dos 87 anos que viveu, teve os últimos marcados por problemas de saúde: desde 1999 enfrentou um câncer linfático, seguido por uma demência que afetou dois dos seus afazeres mais caros, a escrita e o exercício da memória – que, segundo ele, é a própria vida. Faleceu na Cidade do México, acompanhado por Mercedes, com quem se casou em 1956, seus filhos e netos.
Em sua obra, na qual nunca deixou de trabalhar, abordou temas como velhice, morte, doença e sofrimento, os quais vieram à tona pungentemente durante a pandemia de Covid-19. “É impossível não imaginar o que (ele) teria tirado de tudo isso”, disse seu filho Rodrigo, devaneando sobre o olhar encantado que o velho pai lançaria sobre a conjuntura do mundo. Foi em meio a essa especulação que a ele escreveu uma carta publicada no The New York Times, que segue traduzida integralmente:
A carta
CONFIRA TAMBÉM:
06 de maio de 2020
Gabo,
07 de abril foi o sexto aniversário de sua morte, e em grande medida o mundo continuou como sempre esteve; os seres humanos seguem agindo com criativa e assombrosa crueldade, com sublime generosidade e abnegação, e com tudo o que há pelo espectro.
Uma coisa é nova: a pandemia. Ela teve origem, até onde sabemos, em um mercado onde um vírus foi transmitido de um animal para um humano. Um pequeno passo para esse organismo, um grande salto para a sua espécie. A criatura evoluiu durante um tempo incalculável em meio à seleção natural para chegar ao pequeno monstro voraz que é atualmente. Mas é muito injusto referirmo-nos a ele nesses termos, e lamento se as minhas palavras o ofenderam. Ele não tem nada contra nós particularmente. Aproveita-se de nossos corpos porque pode. Certamente, podemos nos identificar com essa impessoal atitude.
Não há um dia em que eu não me depare com alguma referência a O amor nos tempos do cólera, uma alusão a seu título ou uma menção à pandemia de insônia em Cem anos de solidão. É impossível não imaginar o que você teria tirado de tudo isso. Você sempre foi fascinado por epidemias, reais ou fictícias, assim como por coisas e pessoas que retornam.
Você ainda não era nascido quando a gripe espanhola assolou o planeta, mas cresceu em uma casa onde reinava a contação de histórias, para a qual pragas – como os fantasmas e arrependimentos – devem ter rendido bons materiais literários. Você dizia que pessoas falariam de eventos de um passado remoto como contam das coisas acontecidas nos dias do Cometa, provavelmente se referindo à passagem do Halley no início do século XX. Lembro de como você estava ansioso para vê-lo com seus próprios olhos quando ele voltou no fim do milênio. Ele – um relógio misterioso, marcando uma hora silenciosa uma vez a cada 76 anos, segundo o tempo dos humanos – te hipnotizou. Coincidência? Provavelmente apenas mais uma pista falsa. Você era ateu, mas também julgava inconcebível não haver um plano mestre, um contador de histórias, lembra? Quanto a isso, agora você talvez tenha mais conhecimento do que eu.
Uma pandemia voltou à cena. Apesar dos grandes avanços da ciência e da tão celebrada engenhosidade da nossa espécie, nossa melhor defesa, até agora, é simplesmente ficar dentro de casa, se esconder do predador em nossas cavernas. É um momento que faz modestos aqueles com uma inclinação, mesmo pequena, à humildade. Para outros, ele é apenas uma coisa incomoda para atravessar.
Dois países caros a você, Espanha e Itália, estão entre os mais afetados. Alguns de seus amigos mais antigos estão aproveitando ao máximo seus apartamentos em Barcelona, Madri e Milão, que você e Mercedes visitaram inúmeras vezes ao longo de décadas. Ouvi várias pessoas dessa geração dizerem que estão determinadas a persistir, ao menos para evitar morrerem por uma gripe após décadas sobrevivendo a cânceres, tiranos, empregos, responsabilidades e casamentos.
Não é apenas a morte que nos assusta, mas também as suas circunstâncias. Um ato final sem despedidas, assistido por estranhos vestidos como extraterrestres, com máquinas sem coração apitando, cercada por terceiros em situações semelhantes, sem entes queridos… eis o seu maior medo: a solidão.
Você falava de Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe, como uma de suas maiores influências, mas até ontem me fugia que mesmo o seu favorito dos favoritos, Oedipus Rex (Édipo Rei), debruça-se sobre os esforços do Rei em dizimar uma praga. Sempre foi a ironia trágica do destino do protagonista o que esteve em primeiro plano em minhas lembranças, mas foi a peste que liberou as forças que o conduziram a ele. Uma vez você falou que as epidemias te assombram por te lembrarem do nosso destino pessoal. Mesmo com precauções, cuidados médicos, pouca idade ou muita riqueza, qualquer um pode tirar o número do azar. Destino e morte, os assuntos favoritos dos escritores…
Creio que se você estivesse aqui, estaria, como sempre, encantado pelo homem. O termo “homem” não é mais usado dessa forma, faço uma exceção – não em um aceno ao patriarcado, que você detestava – porque ecoaria nos ouvidos do jovem aspirante a artista que você um dia foi, com mais sensibilidade e ideias na cabeça do que você saberia lidar, e com uma forte intuição de que destinos são escritos, mesmo os de criaturas à imagem de Deus amaldiçoadas com livre arbítrio. Você teria pena de nossa fragilidade, se maravilharia com nossa interconexão, se entristeceria com nosso sofrimento, se enfureceria com a insensibilidade de alguns líderes e se comoveria com o heroísmo daqueles nas linhas de frente. E ansiaria por ouvir como os amantes enfrentavam cada obstáculo, inclusive o risco de morte, para ficarem juntos. Acima de tudo, você seria tão querido por nós quanto sempre foi.
Há algumas semanas, nos primeiros dias de quarentena, minha cabeça se esforçava para forjar sentidos disso tudo, ou ao menos rascunhar o que poderíamos fazer com o que foi feito de nós. Eu falhei. A névoa estava muito densa. Mesmo com as coisas se tornando mais cotidianas, como por fim se assentam até nas mais assustadoras guerras, ainda sou incapaz de enquadrar a situação de alguma maneira satisfatória.
Muitos estão certos de que a vida nunca mais será a mesma. É provável que alguns façam grandes mudanças – e alguns mais, poucas –, mas suspeito que a maioria de nós retomará a dança. Haverá uma ideia de que a pandemia foi a prova de que a vida desaparece das mais inesperada das maneiras, e então devemos viver grandiosamente, agora? Um de seus netos compartilha dessa proposição…
Em alguns lugares, estão começando a abrandar as restrições de movimentação, e aos poucos o mundo tentará se aventurar em direção à normalidade. Até mesmo sonhar com a liberdade iminente tem feito muitos revisitarem as promessas que recentemente fizeram aos deuses. O impulso de processar o impacto da pandemia em nosso eu mais profundo, e em toda comunidade, está diminuindo. Mesmo os muitos entre nós que anseiam por entender o que aconteceu serão tentados a tecer interpretações às suas maneiras. Já as compras ameaçam retornar como nosso narcótico favorito.
Ainda estou enevoado. Parece que, por enquanto, terei que esperar pelos mestres, os de agora ou os futuros, para metabolizar essa experiência compartilhada. Aguardo ansiosamente esse dia. Uma canção, um poema, um filme ou um romance finalmente me apontará a direção geral de onde meus pensamentos e sentimentos sobre essa coisa toda estão enterrados. Estou certo de que, quando chegar lá, ainda terei que cavar um pouco mais, sozinho.
Enquanto isso, o planeta continua girando e viver segue misterioso, poderoso e surpreendente. Como você dizia, com menos adjetivos e mais poesia, ninguém ensina nada para a vida.
Rodrigo