Organizado por Cremilda Medina, livro traz textos de participantes de oficina sobre narrativas promovida pelo programa USP 60+
Por Guilherme Gama (*)
“Narrar é uma conquista do Homo sapiens, daí que enquanto vivos temos essa virtual possibilidade de afirmar a narrativa. Quanto mais longe exercermos essa assinatura, mais a vida se prolonga”, afirma a professora Cremilda Medina, da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, organizadora do livro Narrar é LongeViver: Caminhos da Memória, que reúne textos produzidos pelos participantes da Oficina de Narrativas da Contemporaneidade, promovida pelo programa Universidade Aberta à Terceira Idade da USP, atualmente USP 60+. Dirigida por Cremilda, a oficina foi realizada entre agosto e novembro do ano passado, sempre às quartas-feiras de manhã, no Centro Universitário Maria Antonia da USP. O programa 60+ é uma iniciativa da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, que permite que pessoas com mais de 60 anos de idade se matriculem em cursos da Universidade.
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Com 468 páginas, Narrar é LongeViver: Caminhos da Memória traz narrativas de 25 participantes da oficina, além de textos introdutórios assinados pela professora Cremilda Medina e pelo doutorando da ECA Alex Sander Alcântara, orientando de Cremilda, que acompanhou as atividades.
Marie Claire Eshkenazy, de 81 anos, é uma das participantes da oficina que publicam textos no livro. Judia nascida em Paris, na França, que chegou ao Brasil ainda criança, fugindo do nazismo, ela é autora de quatro textos publicados em Narrar é LongeViver. Num deles, Ressonância dos Acordes, conta uma história narrada por um ser inanimado. “Eu sou o violão e tenho uma família muito grande”, escreve. Através desse instrumento musical transformado em personagem da narrativa, Marie Clarie mostra que “a velhice é apenas mais uma dessas paisagens que precisam ser bem vividas para valer a pena”.
Na quinta parte do livro – dedicada à cultura e identidade dos participantes da oficina através dos sabores que os marcaram -, um dos textos é de Sônia Fuentes, que traz uma receita de acarajé e relembra o tempo vivido na sua Bahia natal. “A primeira vez a gente nunca esquece. O cheiro inconfundível a longa distância permite despertar os sentidos e inebriar as narinas pela fragrância gostosa. Boca a salivar diante do aguardado sabor em direção à consumação final goela abaixo. De constituição macia, saborosa e textura crocante, morder-te é fonte de prazer”, escreve Sônia. “Testemunhei e testemunho até hoje o enamoramento da família e dos amigos por esse bolinho.”
Alcântara destaca que, nos encontros da oficina, os participantes foram muito ativos e entusiasmados. “A grande maioria tinha uma agenda lotada, mas não faltava às aulas”, diz o doutorando. “Eles têm sede por aprendizado.”
De acordo com Alcântara, a proposta da oficina não é criar grandes autores, mas sim autores de si, de suas próprias histórias. “O objetivo é que eles sintam que melhoraram dentro de sua própria perspectiva, dentro do grau de conhecimento que cada um tinha em relação a escrever. Eles aprendem a construir histórias dentro de várias perspectivas, sob várias formas de narrar e nunca dentro de uma fôrma”, conta.
“O leitor, em primeiro lugar, pode ou não fruir as narrativas autorais e perceber ou não a importância do registro de histórias, cuja narrativa o convida a participar das experiências de seus parceiros, da sociedade contemporânea e da cultura em que estamos inscritos”, afirma a professora Cremilda. Por trazer o contexto das oficinas, o livro dá ao leitor a possibilidade de também adentrar na dinâmica e exercitar a escrita, a exemplo dos alunos, construir suas próprias narrativas e, portanto, longe viver, acrescenta. “Nunca controlamos a recepção de um livro, mas os autores pretendem uma narrativa tão prazerosa quanto foi a entrega à sua escrita.”
Neste ano, a oficina teve nova edição, ainda que com ajustes. As dinâmicas passaram a seguir o padrão remoto de ensino, devido ao isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus. Segundo outra orientanda de Cremilda, a doutoranda Carolina Klautau, que acompanhou as aulas a distância, a adaptação ao digital foi surpreendente.
“O grupo, que não é nativo do digital, teve vontade de estar junto, de dar continuidade ao trabalho e às relações presenciais iniciais. Percebi que aquele era um momento de desligar dos tempos em que a gente vive, de ter um lugar de encontros de amigos, de muito afeto e de sair da dureza da realidade e entrar nas esferas da narrativa, que é a função das narrativas: gerar identificação, expressão e orientação no universo caótico”, afirma Carolina. Essa última oficina ainda promete um novo livro em 2021.
O livro Narrar é LongeViver: Caminhos da Memória, organizado pela professora Cremilda Medina, está disponível para venda no Portal Edições.
(*) Guilherme Gama é redator do Jornal da USP, onde a matéria foi inicialmente publicada.
Foto destaque de Andrea Piacquadio no Pexels
Atualizado às 23h30