A França está diante de um novo caso de denúncia de maus-tratos a pessoas idosas residentes em uma grande rede de ILPIs, o grupo Bridge.
Após termos publicado o artigo Violência institucional contra pessoas idosas: quando o cuidado falha, nos deparamos com um post no Linkedin do amigo Jorge Felix (que está atualmente na França), sobre um relatório de maus-tratos em casas de repouso do grupo Bridge. Ou seja, a França, um dos países mais envelhecidos da Europa, após ser acusada em 2022 de uma série de irregularidades em seus estabelecimentos também dirigidos para pessoas idosas, volta a ser palco, só que agora com o grupo Bridge.
Para quem não se lembra, as casas de repouso do grupo Orpea, empresa privada mas que se beneficiava de subsídios públicos importantes, foi acusada de abusos de cuidados com a higiene e com a saúde das pessoas idosas, além de refeições e fraldas racionadas e em quantidade insuficiente para os moradores desses estabelecimentos. A denúncia, feita no livro “Les Fossoyeurs” (em tradução livre Os coveiros), levou o governo (pressionado pela comoção social) a fazer uma vasta operação de controle para proteger os residentes, já que esse sistema abusivo fazia parte de uma política de redução de gastos a fim de maior rentabilidade de grupo, que era, na ocasião, líder mundial de casas de repouso (atuava em 23 países). Só no Brasil tinha na época mais de 20 estabelecimentos.
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Em março de 2024, a agência Reuters publicou uma nota anunciando que a empresa, após o escândalo, mudou de nome para Emeis.
A mercantilização da dignidade
É imprescindível que a sociedade esteja em constante alerta para as violências cometidas contra pessoas idosas, especialmente quando essas agressões partem justamente das entidades que, por sua natureza e propósito, deveriam ser exemplos de cuidado, acolhimento e proteção. O mais recente escândalo envolvendo casas de repouso na França, como relata Jorge Felix, é um grito de alerta global, uma ferida aberta que expõe a face mais cruel da desumanização: a transformação de vidas em pura mercadoria.
Se não fosse pela onda de comoção e indignação que se levantou na sociedade francesa em 2022 – impulsionada por reportagens e a voz de familiares desesperados e profissionais indignados –, a barbárie por trás dos muros dessas instituições talvez jamais viesse à tona. As pessoas idosas, muitas delas fragilizadas e dependentes, continuariam à mercê de um sistema que prioriza o lucro acima da dignidade, do bem-estar e, em última instância, da própria vida.
É precisamente neste ponto que reside o nosso papel inalienável – como profissionais da saúde e do cuidado, como familiares preocupados, e como cidadãos conscientes e ativos. Não podemos nos dar ao luxo de sermos meros espectadores. A fiscalização e a denúncia de instituições que reduzem os idosos à condição de “pura mercadoria” não são apenas atos de solidariedade, mas imperativos éticos e morais.
Quando uma casa de repouso, ou qualquer serviço voltado para a população idosa, opera sob a lógica exclusiva do lucro, o ser humano é despojado de sua complexidade e transformado em um “custo” a ser minimizado, ou em um “produto” que gera receita. Essa lógica perversa desvirtua a essência do cuidado, substituindo-o por um padrão de serviços mínimo, frequentemente deficitário, onde a equipe é sobrecarregada, a alimentação é insuficiente, a higiene é precária e, o mais grave, a atenção e o afeto – elementos essenciais para a saúde física e mental das pessoas idosas – são escassos ou inexistentes.
O modelo de negócio que enxerga a pessoa idosa apenas como um “leito ocupado” ou um “pacote de serviços a ser vendido” é fundamentalmente falho e perigoso. Ele abre as portas para a negligência, o abandono e, em casos extremos, para a violência física, psicológica e financeira. O cuidado não pode ser medido apenas por balancetes e planilhas de resultados. Ele exige empatia, profissionalismo, respeito e um profundo senso de responsabilidade social.
É hora de questionarmos coletivamente esse modelo. Devemos exigir transparência, regulamentação rigorosa e mecanismos de fiscalização eficazes. Mas, acima de tudo, devemos denunciar. É a nossa voz que pode romper o silêncio e trazer à luz as atrocidades cometidas em nome do lucro. A dignidade da pessoa idosa não está à venda; ela é um direito inegociável que a sociedade tem o dever de proteger.
Leiam a seguir o post do Jorge Felix na íntegra:
A França está diante de um novo caso de denúncia de maus-tratos a pessoas idosas residentes em uma rede de ILPIs (aqui chamadas Ehpads, que guardam grande diferença do modelo brasileiro). Desta vez, é o grupo Bridge, dono de 37 estabelecimentos (quase 2 mil vagas, em residências menores do que a média nacional).
Depois de 17 meses de investigação, o Tribunal de Contas divulgou um relatório com a constatação de maus tratos, rotação excessiva de pessoal nos cargos de gestão ou mesmo a falta de mão-de-obra de cuidado, comida fria ou inadequada, uso indevido de recursos públicos, entre outras irregularidades e crimes.
O documento foi imediatamente propagado pela Agence France Press e hoje repercute em todas as mídias. Depois do escândalo Orpea, em 2022, denunciado pelo livro-reportagem “Les fossyeurs“, do jornalista Victor Castanet, houve uma mudança na lei de seguridade social (que transfere recursos para as Ehpads privadas).
A auditoria do grupo Bridge é a primeira aplicação da jurisdição do Tribunal de Contas sobre um grupo privado de lares de idosos com fins lucrativos, incluindo a holding e as suas subsidiárias intermediárias. A auditoria encontrou dificuldades “sem precedentes”, segundo nota do tribunal, com o grupo Bridge dificultando a investigação com atrasos e recusas de fornecimento de informações, respostas parciais, falta de dados agregados e negativas de acesso a software.
O grupo foi criado em 2017, está hoje sob nova configuração acionária e nova direção, mudanças ocorridas após o início das investigações, que cobrem apenas o período da administração original (entre 2019-2022). Fica evidente que o fundador do grupo, Charles Memoune, queria emular o modelo da gigante Orpea – que depois do escândalo acabou sendo estatizada e hoje se chama Emeis. Sem prejuízo para a fortuna milionária de seu fundador.
Escrevo este post porque, como já publiquei em artigos acadêmicos e na imprensa, os grupos europeus visam a expansão para a América Latina, como fez o Orpea, no Brasil. São modelos financeirizados, onde os fundos de private equity determinam o tempo do cuidado de acordo com sua perspectiva de retorno sobre o investimento. Não é apenas na França que esse modelo tem mostrado sua incapacidade de oferecer bem-estar às pessoas idosas e dar conta do aumento de demanda de cuidado de longa duração. Sejam os atores ou o próprio modelo de negócio tem se espalhado pelo mundo sem se mostrar promissor para as necessidades contemporâneas.
Em quase todos os casos, a conta sobra para o Estado. A velha história de prejuízos públicos e lucros privados. Outra prova? No mês passado, a antiga Korian, maior empresa francesa do setor, também sob acusações de crimes a ponto de mudar seu nome para Clariane, apresentou sua reestruturação de endividamento.
O resultado desse modelo de negócio é uma desconfiança cada vez maior dos franceses nas Ehpads, embora a procura por vagas ainda seja grande devido ao envelhecimento da população.
Após a leitura do post do Jorge Felix, reafirmamos que não compactuamos com o silêncio cúmplice da sociedade ante essas violências, prova cabal de que a inação social permite que abusos floresçam nas sombras. Vamos, portanto, exercitar nossa responsabilidade como sociedade. Que a comoção gerada na França em 2022 e agora seja um catalisador para uma vigilância contínua e implacável em todos os cantos deste país afora!
