Talvez, afinal, não haja nenhuma maneira de “envelhecer bem”; talvez não haja nada, rigorosamente nada, de bom em envelhecer. Mas, já que tem de ser, ao menos que cada um possa sentir-se livre para decidir a forma, o ritmo, o modelo: “As pessoas devem poder escolher como querem viver, sem serem alvo de pressão e de uma brutal censura social”.
O idadismo, que é preconceito etário, especialmente contra pessoas mais velhas, vem sendo cada vez mais denunciado, afinal, por que as pessoas não podem continuar vivendo a vida como sempre a viveram? Por que ainda se quer colocar os mais velhos nos aposentos como se ali fosse o único lugar a ser habitado por quem ultrapassou 60, 70, 80, 90? Qual é o lugar de cada um neste mundo? Haverá um? Estas questões estão delicadamente colocadas pelas vozes de quem sofre esses preconceitos. Por isso recomendamos a leitura da matéria de Fernanda Câncio, a qual trazemos uma pequena mostra, escrita para o jornal Diário de Notícias (Portugal).
Fernanda Câncio *
Idadismo. Vem do inglês “ageism” e é o nome que se dá à discriminação de quem é considerado “demasiado velho para”. A partir de que idade somos
“demasiado velhos?. ” O que é “saber envelhecer”? O que sucede a quem resiste à norma? E porque é que, como Madonna denuncia, é tudo muito pior para as mulheres?
Quem frequenta o Lux-Frágil, a discoteca lisboeta junto a Santa Apolónia, já se habituou a vê-lo. O João dança, dança, dança, rodopia, salta, braços em desenhos ritmados abrindo, à volta, um círculo de admiração. Normal, as pessoas vão às discotecas para dançar – as que não vão para ficar ali a olhar quem dança. Mas nele toda a gente repara, os que olham e os que dançam, e não é só por dançar tanto e tão bem, por tantas mulheres virem ter com ele para duetos mais ou menos prolongados, ou por ao longo da noite ir mudando de roupa, de cada vez que o suor empapa a T-shirt, às vezes ali mesmo no meio da pista.
“Não há nenhuma noite em que não me perguntem dez vezes que idade tenho, de onde me vem a energia. Os mais ordinários dizem: “Ó cota, o que é que estás aqui a fazer?” Às vezes incomodam e dizem frases absurdas. E ao segundo incómodo chateio-me mesmo. No Lux sinto-me um bocado protegido, porque sou muito antigo lá. Mas não é muito frequente ter de recorrer à segurança.”
O João tem 67 anos e Botelho de apelido. É um dos grandes realizadores de cinema do país (Conversa Acabada, Um Adeus Português, Tempos Difíceis, Os Maias), mas estas pessoas que o estranham não sabem disso, só que é um homem de cabelo branco e que podia ser, talvez, seu avô. “A ideia que eles têm, claro, é de que não pertenço ali. E como a envolvente muitas vezes são mulheres mais jovens e bonitas há quem fique incomodado. Tem a ver com não me comportar corretamente, de acordo com os códigos sociais. O comportamento dito correto das pessoas da minha idade: andar-se muito sisudo, triste, à espera de morrer… Ora eu acho que as pessoas não se devem comportar de acordo com o que se espera delas, devem fazer o que quiserem com um único limite: não incomodar os outros.”
Invoca Nietzsche e o seu “só acredito num deus que saiba dançar”: “É uma coisa de vitalidade. O Eros é mais forte do que o Tanatos. Não recomendo isto a ninguém, não é exemplo. Mas acho que as pessoas devem viver até ao fim, estamos na terra para fazer coisas. E quando deixam de fazer começa a ser um pesadelo.”
“Não te esqueças de que és avó”
No Lux, ou noutros lugares de dança, não é comum ver pessoas da idade de João, mas ainda assim vão aparecendo uma aqui, outra ali. Homens. E mulheres? O cineasta reflete: “No outro dia vi duas senhoras, mas é raro.” Uma mulher de quase 70 anos a dançar noite fora no Lux, como seria? A escritora e crítica literária Helena Vasconcelos, de 67 anos, não pode saber; há mais de uma década que ela, frequentadora de primeira hora do Frágil do Bairro Alto, deixou de fazer noitadas de dança. Mas sabe que às vezes as netas, de 14 e 16 anos, lhe dizem: “Não te esqueças de que és avó. Já és uma senhora de idade e estás aqui a dançar no meio da sala.” Ri. “Elas se calhar têm a expectativa de que me comporte como uma velhinha. Mas outras vezes dizem-me: “Quero ser como tu.” É complicado para elas perceber que sou uma pessoa que já foi fotografada nua, confrontarem-se com as fotos do Julião [Sarmento, artista plástico com quem Helena viveu e de quem foi modelo em inúmeras obras]. E até uma grande amiga já me disse: “Não estás a aceitar o envelhecimento, vestes minissaias.” Muita gente, se calhar a maioria, conforma-se com o que é esperado. Mas essa imposição, essa pressão social, é sem dúvida muito mais violenta para as mulheres.”
Uma imposição que é também uma exclusão: tens de te portar de acordo com a tua idade; portares-te de acordo com a tua idade é ficares invisível, desaparecer, abandonar certas atitudes, atividades, vestimentas, desejos, seres discriminada em determinadas profissões, até despedida; se não te portares da forma que é considerada adequada à tua idade diremos que não sabes envelhecer, que és patética. Aquilo que, sob a denominação de ageism (“idadismo”), mulheres como Madonna (58 anos) e a atriz de O Sexo e a Cidade Kim Cattrall (60 anos) têm denunciado com veemência.
Cattrall diz que o envelhecimento é um tabu, fala do desaparecimento das mulheres da idade dela nas séries e nos filmes e no facto de sentir que alguém que como ela “quer ser sexual até poder” é visto como uma aberração. No mês passado, no seu discurso de aceitação do prémio de mulher do ano da revista Billboard, um discurso em que pelo menos duas vezes alguém que nos habituámos a ver sempre tão dura e segura chega às lágrimas – Madonna falou do que é ser mulher, pop star e a caminho dos 60 (fez 58 em agosto): “Obrigada por reconhecerem a minha capacidade por continuar com a minha carreira por 34 anos desafiando a misoginia galopante, sexismo, bullying constante e agressão permanente. (…) Envelhecer é um pecado. Vais ser criticada, vais ser vilipendiada e, definitivamente, não passarás na rádio.”
Leia a matéria completa de Fernanda Câncio que escreveu para o Jornal Diário de Notícias (Portugal): https://www.dn.pt/sociedade/interior/o-cota-que-estas-aqui-a-fazer-5619904.html
Nota da Redação Portal
Há alguns trabalhos acadêmicos a respeito de escritos sobre o tema do Idadismo/Ageísmo/Preconceito Etário, que merecem ser lidos. Elencamos alguns deles publicados na Revista Kairós-Gerontologia da PUC-SP. São eles:
Alguns apontamentos sobre o Idadismo: a posição de pessoas idosas diante desse agravo à sua subjetividade. SOUSA, Ana Carla Santos Nogueira de; LODOVICI, Flamínia Manzano Moreira; SILVEIRA, Nadia Dumara Ruiz, ARANTES, Regina Pilar Galhego. Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento, Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 853-877. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/RevEnvelhecer/article/view/50435/33290
[Dissertação] O idadismo sob a escuta dos idosos. GUIDES, Ana Carla Nogueira de Sousa. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2016). URL:https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/12470
Ageísmo: um estudo com grupos de Terceira Idade. ROZENDO, Adriano da Silva. Revista Kairós Gerontologia, 19(3), pp. 79-89. Disponível em:https://revistas.pucsp.br/index.php/kairos/article/view/31558/22007.
Estereótipos dos idosos retratados nos Desenhos Animados da filmografia ocidental. VIEIRA, Yasmine Oliveira, PIERDONÁ, Natália, DUARTE, Josiane Aparecida, BEZERRA, Armando J. C., GOMES, Lucy. Revista Kairós Gerontologia, 19(3), pp. 91-112. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/kairos/article/view/31554/22006
Boa leitura!