Envelhecer sendo autista: um desafio ainda invisível nas políticas públicas

Envelhecer sendo autista: um desafio ainda invisível nas políticas públicas

O envelhecimento de pessoas autistas é um campo negligenciado, envolto por silêncio institucional, descontinuidade assistencial e escassez de dados.


Por Adriana Cardoso, Alessandro Freitas e João Brito (*)

Você já se perguntou onde estão as pessoas idosas autistas? A pergunta é simples, mas a resposta revela um apagamento histórico: elas existem, mas são pouco consideradas pelas políticas públicas. O envelhecimento de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um campo negligenciado, envolto por silêncio institucional, descontinuidade assistencial e escassez de dados.

O Brasil está envelhecendo, e rápido. Segundo dados do IBGE (2023), em menos de uma década, haverá mais pessoas com mais de 60 anos do que crianças. Mesmo assim, o Estado continua investindo majoritariamente em ações voltadas à primeira infância, como se o TEA fosse uma condição restrita às crianças. Essa miopia política deixa milhares de pessoas autistas adultas e idosas sem respaldo, apoio ou reconhecimento.

A ausência de protocolos de cuidado, de equipes capacitadas para o acompanhamento ao longo da vida e de serviços adaptados não é apenas uma falha técnica – é uma expressão do capacitismo institucional. A negligência não é um acaso, é uma escolha política.

Modelo social da deficiência: entre teoria e omissão

Desde a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU, 2006) sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o Brasil assumiu o compromisso de adotar o modelo social da deficiência.

Segundo esse modelo, a deficiência não está no corpo da pessoa, mas nas barreiras impostas pelo meio. A Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) é fundamentada nessa perspectiva. No entanto, a prática está distante do discurso. Termos como “impedimento de longo prazo” (Art. 2º) ainda são utilizados, mantendo o foco no corpo como origem da deficiência. Além disso, a previsão legal da curatela (Art. 84) perpetua um modelo tutelar que enfraquece a autonomia e legitima a interdição de pessoas que poderiam exercer sua cidadania com o suporte adequado.

Esses dispositivos, mesmo que redigidos sob o guarda-chuva da inclusão, ainda abrem brechas para a reificação da deficiência como defeito. Como afirma Kilomba (2019), “a linguagem é o primeiro campo de batalha”. Ao repetir expressões ambíguas, a legislação contribui para a perpetuação de estigmas e legitima a exclusão sob aparente neutralidade.

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A proposta de consolidação legislativa: solução ou nova camuflagem?

Recentemente, foi apresentada a proposta de criação de um Código Brasileiro de Inclusão (CBI), com a intenção de unificar mais de 200 leis federais voltadas às pessoas com deficiência. A ideia, em teoria, é promissora: facilitar o acesso às normas, garantir sua aplicação efetiva e promover maior coerência legal.

Contudo, a proposta suscita uma questão urgente: a consolidação vai aprofundar o modelo social da deficiência ou apenas empacotar as contradições já existentes em um único documento? A nova redação será interseccional, anticapacitista e sensível ao ciclo de vida, ou seguirá reproduzindo silêncios?

O recorte do envelhecimento autista, por exemplo, ainda é residual. Estudos como os de Edelson (2021) e Lin (2023) e colaboradores mostram a ausência de políticas que integrem as necessidades sensoriais, comunicacionais e afetivas da pessoa autista idosa às redes de cuidado e proteção social. Diagnóstico tardio, sobrecarga emocional em hospitalizações, falta de moradia assistida, solidão institucionalizada: tudo isso não é exceção, é regra.

Quando o direito não chega: entre a lei e o abandono

O Estatuto da Pessoa com Deficiência estabelece que “à pessoa com deficiência é assegurado o direito de exercer sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas” (Art. 6º). Mas onde está essa igualdade quando se trata de uma pessoa idosa autista, sem rede de apoio, exposta à violência institucional, à desinformação médica e à solidão política?

As políticas não podem continuar tratando os direitos das pessoas com deficiência como favores ou exceções. É urgente abandonar o assistencialismo e construir uma agenda pública intersetorial, com protagonismo da própria comunidade autista, sobretudo de pessoas adultas e idosas que por tanto tempo foram ignoradas.

Entre o silêncio e a ruptura

Envelhecer sendo autista, hoje, é atravessar um espaço vazio de políticas, de representatividade e de cuidado. É viver entre legislações que se dispersam e direitos que não se completam. É testemunhar uma inclusão que, por vezes, se encerra com o fim da infância.

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Por isso, embora o processo de consolidação legislativa que propõe o Código Brasileiro de Inclusão tenha um papel organizativo relevante, é importante esclarecer: uma consolidação não permite alterar o conteúdo substancial das leis já existentes.

Diante disso, o debate sobre o Código não deve ser apenas técnico ou codificador. Ele precisa ser também político, histórico e participativo. Que sirva para expor as omissões que persistem, para nomear os silêncios normativos, uso de termos inadequados e para abrir caminhos de reforma futura que garantam um horizonte de continuidade real dos direitos.

Consolidar não é corrigir, mas pode ser o primeiro passo para reconhecer onde está a fratura. Se queremos legislar com justiça, precisamos começar reconhecendo onde ela foi interrompida e impedir que termos mal empregados contribuam para a perpetuação de estigmas e capacitismo institucionalizados.

Assim, produzir pesquisas que investiguem as especificidades do envelhecimento de pessoas com deficiência – especialmente aquelas com trajetórias neuroatípicas – não é apenas uma demanda acadêmica: é um imperativo ético, político e civilizatório. Trata-se de reconhecer que a ausência de dados também é uma forma de exclusão.

Somente por meio de evidências sólidas e escuta qualificada será possível elaborar políticas públicas comprometidas com a promoção de qualidade de vida, a efetivação de direitos, o fortalecimento de vínculos de pertencimento e a valorização da neurodiversidade como expressão legítima da condição humana.

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Referências
Edelson, S. M., Frey, L. C., & Simons, J. (2021). Aging and Autism: Issues for the Future. Autism Research Institute. https://www.autism.org/aging-and-autism/

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2023). Projeção da população do Brasil e Unidades da Federação. https://www.ibge.gov.br/

Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Cobogó.

Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. (2015). Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm

Lin, L. Y., Huang, P. C., & Chiang, H. M. (2023). Aging and service utilization among autistic adults: A scoping review. Journal of Autism and Developmental Disorders, 53(2), 720–736. https://doi.org/10.1007/s10803-022-05602-z

Organização das Nações Unidas. (2006). Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. https://www.un.org/esa/socdev/enable/documents/tccconvs.pdf

(*) Adriana Cardoso – Neuropsicóloga clínica e hospitalar. Neurocientista e fundadora da NEUROPSI.io. Graduada em Psicologia pela Universidade de Santo Amaro (2012). Graduanda em Gerontologia pela Universidade de São Paulo – USP. É pós-graduada em Neuropsicologia pela EEP do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP – HCFMUSP; em Neurociências e em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP; em Psicanálise Clínica pelo Centro Universitário Ítalo Brasileiro; e em Psico-Oncologia pelo Instituto São Paulo de Formação e Especialização Profissional do Hospital Santa Paula. É neuropsicóloga especialista em neuroatipicidade, com foco no Transtorno do Espectro Autista (TEA), Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD) e Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Atua como CEO da NEUROPSI.io, uma empresa DNA USP, dedicada ao diagnóstico e acompanhamento clínico de pessoas neuroatípicas, bem como ao letramento, suporte técnico e formativo para empresas inclusivas e lideranças de pessoas neurodivergentes (2022–atual). Teve o projeto NEUROPSI selecionado em edital de inovação e empreendedorismo pela Agência USP de Inovação (AUSPIN – USP), com desenvolvimento internacional na área da saúde mental, tecnologia e inovação social pela Universidade de Coimbra (UC) e pela Escola Superior de Educação de Coimbra (ESEC), ambas em Portugal (2023–2024).
Alessandro Freitas – CFO da NEUROPSI.io. Pesquisador Graduado em Ciências Contábeis e Psicologia pela Universidade de Santo Amaro. Pós-graduando em Neurociências pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. Pós-graduado em Psicanálise Clínica pelo Centro Universitário Ítalo Brasileiro e em Finanças e Controladoria pelo INPG – Business School. Graduando em Filosofia na Universidade Federal de São Paulo. Tem ampla experiência em finanças corporativas. Atua nas áreas de neurodiversidade, avaliação neuropsicológica e desenvolvimento humano, com foco em envelhecimento. Foi psicólogo avaliador no estudo de longa duração, vinculado ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: A eficácia de um programa de estimulação cognitiva com componentes multifatoriais Unidade I: Avenida Paulista, 1.471| Bela Vista| São Paulo Unidade II: Rua Darwin, 517 | Boa Vista | São Paulo relacionamento@neuropsi.io | cardoso.adriana@usp.br neuropsi.io | +55 1193318-1077na cognição e em variáveis, psicossociais de idosos sem demência e sem depressão: um ensaio clínico randomizado e controlado (2022 à 2024).
João Brito – CMO da NEUROPSI.io. Pesquisador e sysadmin de formação. CTO da Getup, uma empresa especializada em soluções de infraestrutura em nuvem. É também o apresentador do Kubicast, o maior podcast brasileiro dedicado ao Kubernetes, onde compartilha seu conhecimento sobre essa tecnologia. Com formação em administração de sistemas, João tem experiência em grandes corporações, lidando com hospedagem e monitoramento de sistemas críticos. Desde 2016 na Getup, ele se tornou um especialista em Kubernetes, integrando e entregando soluções de infraestrutura ágeis e eficazes. Além disso, João é um entusiasta de DevOps e defensor de tecnologias open source, especialmente aquelas que aceleram a jornada das empresas.

Foto de Mehmet Turgut Kirkgoz/pexels.


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