‘Conhecimento indígena tem valor’, diz antropólogo indígena em entrevista  

‘Conhecimento indígena tem valor’, diz antropólogo indígena em entrevista  

Para os povos indígenas, floresta, rios e cachoeiras são habitados por “humanos” que requerem negociação e diálogo.


Em entrevista exclusiva à Agência Bori, o cientista indígena João Paulo Lima Barreto, pesquisador da Universidade Federal do Amazonas e um dos autores de artigo histórico publicado recentemente na revista Science, falou dos desafios da comunicação e do efetivo diálogo entre o conhecimento indígena e da ciência ocidental, especialmente diante da mudança climática. 

João Paulo afirma que o artigo “Indigenizando a conservação para uma Amazônia sustentável” propõe como alternativa viável para o futuro sustentável do planeta o respeito aos sistemas de formação dos especialistas indígenas, que há milhares de anos lidam com as questões da preservação da Terra, das espécies e também da medicina.  

Às vésperas da COP 30, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que será realizada no mês de novembro em Belém, no Pará, o primeiro indígena a receber o título de doutor na UFAM afirma que a maior barreira ainda é a integração dos saberes, em lugar de uma ciência única e ocidental, e a inclusão dos povos indígenas nas discussões. “Nossos especialistas nunca são convidados para grandes conferências, nem que seja apenas para ouvir o que eles têm a dizer sobre essas questões”, diz. 

Recentemente foi a primeira vez que cientistas indígenas publicaram um artigo na prestigiosa revista Science, entre eles o senhor. Gostaria que o contasse como foi esse caminho.
Ficamos mais de um ano trabalhando nesse artigo. O desafio começou com o encontro com os cientistas não indígenas. Existe uma grande fronteira entre dois modelos de conhecimento, o nosso [indígena], e o conhecimento científico, que se coloca como universal. Quando os cientistas se dispõem a ouvir e adentrar os nossos conhecimentos, nós temos que ter um esforço de tradução. O segundo desafio foi chegar aos editores da revista Science, que lidam com dados, que eles chamam de evidências, argumentos racionais, que fogem dos nossos conhecimentos. Foi um processo longo de construção com os pareceristas, que a princípio davam como não ciência, como conhecimento, aquilo que a gente estava falando. Mas a gente teve o grande apoio dos pesquisadores não indígenas para construir esse diálogo.

Poderia trazer alguns exemplos práticos que ajudaram a construir esse artigo e validar a importância do conhecimento indígena?
Quando a gente traz essa terminologia de ciência, não significa dizer que nosso sistema de conhecimento é equivalente a esse modelo científico. Não é isso que a gente está dizendo. Nós estamos dizendo que temos nossos conhecimentos específicos, que são tão importantes quanto esse conhecimento construído no modelo científico. Eu costumo dizer que nós estamos diante de dois modelos diferentes de construção de conhecimento. Nós, povos indígenas, estamos neste território, conforme a idade arqueológica — e da ciência —, há pelo menos 12 mil anos. Em todo esse tempo nós estamos manejando a terra, a floresta, os rios, os lagos, o cosmo, desenvolvendo tecnologias, desenvolvendo medicina. 

E essa ciência que temos hoje como modelo universal de conhecimento desconsidera e desqualifica outros modelos. Mas todos os povos baseiam seu conhecimento em mitos quando a gente vê o passado remoto. Hoje parece que nós somos escravos da razão. Há outros caminhos de conhecimento, e também está muito claro que nós somos povos de oralidade. Nós construímos nossos conhecimentos pela oralidade, reproduzimos nossos conhecimentos pela oralidade. A ciência, ela tem seu modelo próprio, que é a escrita. Portanto, nós estamos diante de dois modelos totalmente diferentes. Nossa ideia é propor diálogos entre modelos de conhecimento diferentes.

Como colocar toda a expertise dos povos originários em interlocução com a ciência ocidental, especialmente diante de um planeta que está passando por questões climáticas tão graves? 
A nossa relação com tudo que está em nosso entorno está baseada em nossas próprias teorias. Não é porque eu sou bonzinho que eu não destruo a floresta, que não destruo a cachoeira. Nós temos um conceito ou uma concepção de que todos os ambientes, seja aéreo, terrestre, floresta ou água, são habitados por humanos, que nós chamamos de  Ye’pamahsã. Essa ideia é geral para os povos indígenas. Isso já foi traduzido como espírito e não tem nada a ver, não é algo religioso. Estamos dizendo que são humanos — como nós — com os quais nós devemos dialogar, comunicar, trocar, negociar. 

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E por que isso, para nós, é importante? Na cidade, a gente vê que as pessoas têm a prática de cercar seu terreno, sua casa. Deixam vigia, cachorro bravo ou outros mecanismos de proteção. Também esses humanos que habitam a cachoeira, o rio, a floresta, a terra e o espaço aéreo cuidam do seu território. Então toda vez que a gente vai fazer excursões de caça, de pesca, tirar madeira ou fazer roçado, nós devemos negociar. Senão eles vão nos atacar. E esses ataques se dão na forma de doenças, acidentes, conflitos sociais. Então, tudo está ligado. Tudo está sob o cuidado de alguém. Essa concepção para nós é fundamental, porque é essa negociação que garante o equilíbrio. 

Sobre as mudanças climáticas, como é que os povos indígenas entendem essa resposta da Terra? Como são compreendidos esses eventos climáticos extremos?
Não há dúvidas de que a maior parte dessas mudanças climáticas é causada pela destruição, pela poluição. Mas para nós, povos indígenas, vai além disso. É a nossa desconexão de diálogo e de negociação com esses humanos que cuidam das coisas, de todos os espaços habitados, e do que está nesses lugares. O que acontecia anteriormente, quando a gente não tinha ainda esse contato tão avançado com o mundo exterior, é que toda vez que ia começar a transição de constelações, ou seja, o que chamamos de “grande verão”, o nosso especialista entrava em ação para se comunicar com esses humanos que cuidam do Sol, para avisar que estava começando um verão. Tinha dias de sol, depois parava e tinha também alguns dias de chuva, algo intercalado, muito bem intercalado. E hoje não tem mais isso, porque ninguém comunica mais. Da mesma forma, durante o inverno, havia equilíbrio, porque havia uma comunicação muito boa. Dizem nossos especialistas que eles [os outros humanos] nem sabem o que está acontecendo aqui, e nós também não sabemos o que está acontecendo lá.

Estamos nos aproximando da COP30, que será realizada na Amazônia, em Belém (PA). Na perspectiva dos povos indígenas, o que a gente pode esperar do evento?
Sabemos que já existe esse grande investimento de manter a floresta em pé, que é preciso manejar os recursos etc. Todo mundo está nessa questão, indígenas, ONGs, mas não estão discutindo a importância dos conhecimentos indígenas e seus operadores. Os nossos especialistas nunca são convidados para grandes conferências, nem que seja apenas para ouvir o que esses especialistas têm a dizer sobre essas questões. São convidados jovens indígenas, lideranças indígenas, que vão nesse discurso da ciência. Mas, precisamos olhar, de forma inclusiva e séria, os conhecimentos indígenas, e fazer com que eles sejam considerados também em políticas públicas. 

Qual é o desafio para que esse encontro mais harmonioso entre ciência ocidental e ciência indígena?
Nós, indígenas que estamos nas universidades como pesquisadores ou produtores de conhecimento no modelo científico, precisamos sair dessas “chaves” da religião e do “etno” para falar do nosso sistema de conhecimentos. Precisamos nos livrar das palavras como “casas sagradas”, “espiritualidade”, “espíritos”, “mitos”, “lendas”, “tabu”, “rezador”, “benzedor”, “fé”, “criador”, “criatura”. São palavras que são especificamente do campo da religião. O “etno” também traz armadilha: “etnobotânica”, “etnoconhecimento”, “etno-história”, “etnomatemática”, “etnotudo”! Todas essas palavras que a ciência classifica outros modelos de conhecimentos como uma chave do Etno. O primeiro desafio é nos livrarmos dessas armadilhas. 

Fonte: Agência Bori

Foto de Mali Maeder/pexels.


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