Normativa 582/2018 proíbe que enfermeiros ensinem práticas de enfermagem tanto em aulas teóricas como em atividades de estágios em cursos de cuidadores de idosos.
O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) publicou no dia 17 de julho a Resolução 582/2018, que “veda a participação do Enfermeiro no ensino de práticas de Enfermagem que exija aplicação de conhecimentos técnico-científicos em atividades de formação de Cuidador de Idosos”.
Em suma, essa normativa proíbe que enfermeiros ensinem práticas de enfermagem tanto em aulas teóricas como em atividades de estágios em cursos que visem à formação de cuidadores de idosos. Mobilizados para reverter a situação, representantes de movimentos sociais e coordenadores de cursos para cuidadores do Rio de Janeiro se reuniram, no dia 6 de agosto, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), para debater a questão. “Com abrangência nacional e sem qualquer base teórica, a resolução foi embasada por um parecer técnico muito fraco, elaborado por uma pessoa que não é do campo da gerontologia. Não houve ainda nenhum debate com pessoas do campo do envelhecimento”, critica o professor-pesquisador Daniel Groisman, coordenador do curso de qualificação profissional no cuidado à pessoa idosa da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
Para a presidente do Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (Olhe), Marília Berzins, estados, sociedade civil e, sobretudo, as categorias profissionais precisam assumir o compromisso de um envelhecimento digno a todos no Brasil. E é preocupante, segundo ela, que uma categoria profissional crie uma resolução tão restritiva quanto essa. “Os enfermeiros são profissionais importantes na relação com o cuidado, no envelhecimento e na velhice e, portanto, não incluí-los nesse processo de formação, qualidade e melhoria dos cuidadores, é um prejuízo muito grande para todos”, aponta.
Dorisdaia Carvalho, coordenadora da Câmara Técnica de Educação e Pesquisa do Cofen, argumenta que, no momento em que se forma um cuidador de idosos para dar um banho de leito, por exemplo, isso retira as atividades de um profissional de enfermagem no âmbito hospitalar. Além disso, ela destaca que a preocupação é que se os profissionais de enfermagem fornecem orientações e ensinam práticas a um profissional que não seja da área, os enfermeiros passam a ser responsáveis pelas ações desse outro profissional, no caso, os cuidadores. “Na verdade, hoje quem executa essas atividades de enfermagem no hospital é o técnico ou o auxiliar de enfermagem. Nós queremos que o auxiliar faça uma formação para ser técnico. Não queremos mais categorias, queremos reduzir categorias. Porque os problemas ficam muito maiores quando dividimos atividades técnicas”, explica Dorisdaia.
Dorisdaia ressalta que a discussão maior com a categoria de enfermagem aconteceu nos próprios conselhos regionais, que encaminharam as consultas feitas com enfermeiros para o Cofen, que por sua vez, se embasou neles para criar a resolução.”Nós não vamos dar a formação. A resolução vai nesse sentido: a enfermagem não vai assumir a formação nem o gerenciamento das atividades deles. O cuidador não é um profissional de enfermagem”, afirma.
Groisman, porém, destaca que não são apenas enfermeiros que dão aulas nos cursos de cuidador de idoso: “O artigo 5 da lei nº 7.332/2016, que estabelece normas para o exercício da atividade profissional de cuidador da pessoa idosa no âmbito do estado do Rio de Janeiro, diz que o corpo docente de profissionais relacionados ao campo da gerontologia são geriatras, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais. E, nos cursos em geral, temos esses profissionais dando aula”.
Reserva de mercado?
Na opinião de Groisman, o pano de fundo dessa resolução é o fato de a enfermagem ocupar determinados espaços com “perspectiva de monopólio”. “Vejo com tristeza a posição do Cofen, porque demonstra uma falta de reconhecimento na importância social de formar cuidadores de idosos. Uma tentativa de garantir um determinado tipo de monopólio sobre o mercado de serviços não pode ficar acima dos interesses da sociedade. Defender que não se possa informar sobre cuidados muito elementares é fechar os olhos para a realidade do país de aumento no envelhecimento e, consequentemente, aumento da necessidade de cuidados”, alerta.
Segundo Groisman, essa tentativa de ‘reserva de mercado’ não começou agora: aconteceu primeiro nos hospitais, quando os enfermeiros assumiram parte dos cuidados da saúde que antes eram feitos por outros profissionais. “Depois, a enfermagem se voltou para o mercado familiar e domiciliar e começou a ter um entendimento de que aquilo que, historicamente, os cuidadores faziam pertencia ao seu âmbito”, conta. E analisa: “É uma disputa de território ocupacional assimétrica, porque os cuidadores têm uma fragilidade social muito grande, uma capacidade de organização muito menor, e não têm conselhos e sindicatos”.
Groisman conta que em outros momentos já ocorreram ações de ataque de entidades da enfermagem aos cuidadores como, por exemplo, a resistência da categoria à regulamentação da profissão de cuidador. Ele também destaca que no início dos anos 2000, o Conselho Regional de Enfermagem (Coren) de alguns estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, já tinham emitido resoluções buscando proibir a participação de enfermeiros no ensino de cuidadores. “Porém, com o passar do tempo, tais resoluções foram alteradas ou flexibilizadas, porque atingiam os próprios enfermeiros, que perderam postos de trabalho na docência, além de prejudicar a formação de cuidadores e a própria sociedade, que precisava – e ainda precisa – de cuidadores bem preparados”, explica.
Sobre a retomada dessa decisão agora, tanto tempo depois, Groisman lamenta: “É importante lembrar que todos nós temos que respeitar direitos fundamentais previstos na Constituição. A formação de trabalhadores para o atendimento das necessidades dos idosos é um dos itens definidos pelo Estatuto do Idoso como inerente ao direito fundamental à pessoa idosa no Brasil. Qualquer violação a esses direitos precisa ser denunciada e repudiada”.
Em meio a tantos ataques à categoria, Groisman cita ainda a Portaria nº1, de 13 de julho de 2018, da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, que previa uma comissão para estabelecer diretrizes para a formação de cuidadores e que incluía o Cofen entre os órgãos e entidades participantes. Menos de um mês depois de ser publicada, a portaria foi revogada sem maiores explicações. “É muito estranho esse movimento de criar uma comissão com uma composição pouco representativa, sem a participação das entidades formadoras, de representações dos cuidadores e sem inclusão da área técnica da saúde do idoso do Ministério da Saúde. E com a participação de conselhos profissionais, inclusive, de um conselho que afirma que quer se retirar dessa formação”, denuncia.
Imagem: cuidadora Sônia Almeida de Souza, em curso no Senac Sergipe de cuidadores, em 2017. Foto divulgação