Este começo de dia foi interditado pela noite que não veio. Assim ficam as noites, turvas, desfocadas, por não saberem anoitecer. Dias que não sabem amanhecer.
Faz quatro horas e 26 minutos que o dia começou… Acho que ainda está bem escuro. Temo abrir o outro olho. Apavora-me, anseio-me. A claridade próxima a chegar, será o caos. Tragédia de uma noite que não inicia, nega o princípio da sua própria existência, não assume seus deveres, suas benevolências e a enorme capacidade em abraçar os românticos com os braços do desejo. Dilui-se tudo em sombras. Este começo de dia foi interditado pela noite que não veio. Não virá, pois está impregnada. É desastroso. Assim ficam as noites, turvas, desfocadas, por não saberem anoitecer. Dias que não sabem amanhecer. Parece que todo o ar do mundo foi retirado.
O dia, por complexidade natural, radicalismo, e não aceitar pedidos, amanhece. Basta a mudança que a noite lhe impõe, e reclama. A período fixo e exato, ser obrigado a cada 12 horas a perder a luz e findar, basta-lhe. A noite é mais permissiva. Mesmo com a certeza do renascimento, entra em pânico. Não sabe, não quer mesmo ser noite. Esta poesia do tempo: noite, terror, dia, escuridão, crime ou amor está sempre repleto de pragas, taras, desejos, passados, presentes e futuros. São resquícios dos dias anteriores que, injustiçados, flutuam na noite à espera de uma única luz.
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Odeio a vigilância do relógio sobre o tempo e meus anseios. Abro o WhatsApp para encontrar um “online”. Estava jogando comigo mesmo, a minha sobrevivência. Nada vivia, uma figurinha de ontem, ninguém sobreviveu. Não quero conversar. Seria para saber se o mundo, eu principalmente, vivíamos. Alguns, em desrespeito aos “insoniados”, desativam o horário da última olhada. O aplicativo deveria retirar esta opção por todas as madrugadas.
O inferno estava pleno, chamas intensas. Agora, um vento polar vindo do Sul congela meu cérebro e uma certeza: não desligo, não apago. Dante, o Alighieri estará aqui, às 5h20min para dar risadas e falar de infernos modernos. São muitos: incertezas, inseguranças, ansiedades e pandemia. Contas a pagar, injustiças sociais. Cerca de 117 milhões de brasileiros estão em algum grau de insegurança alimentar. Tudo amanhece pontualmente em chamas.
5hs30min, hora do desmonte. Sono, dor de cabeça, ódio do nada, ressaca de tudo bebido numa mesma noite, da pior noite onde tudo aconteceu, menos a noite. Torturado por infinitas horas na própria solitária. Nenhuma farra, nem uma mísera história para contar, uma aventura para reclamar, ter saudades, se arrepender e dar risadas. Tudo ficou perdido, não há referência. É um amanhecer no vazio. Este é um tempo indefinido da natureza, somente o nada existe. Não há claro, nem escuro. Se havia um cérebro, não mais.
Obrigatoriamente a vida ensaia uma volta. O trânsito é uma tortura, massacre coletivo. As pessoas correm em todas as direções, em silêncio. Vejo caras “amassadas”, de uma longa noite de sono. Um idiota segura a mão na buzina do carro, motos por todos os lados, sobre as calçadas. O ser humano é indestrutível: ainda não explodi.
Ao meu lado, na noite vizinha, encontrei várias insônias e longos pesadelos. Mulheres, por meio de projeto lei, em sessão solene perdem mais espaço na Câmara Legislativa. Brasil continua sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo. Insônia e pesadelo, juntos, à espera do amanhecer para, em nome do Pai, receber “a paga”, em ouro, de propina, suborno.
Não amanhece nunca mais para quem teve sua própria luz retirada: Dandara, Marielle, Jasmyne, Keron Ravach, de 13 anos. Crismily Pérola… São, ao menos, 300 LGBTQI+ que em 2021 deixaram de falar de amor, família, carinho, sonhos, justiça e filhos, principalmente. Serão filhos, amores, pais, maridos e esposas que por muitas décadas habitarão o nada, terão pesadelos por companhia. Dias com pouca ou quase nenhuma luz. Ninguém poderá mais amanhecer. Nunca mais poderão falar de amor, vida respeito, justiça. As luzes de cada uma dessas casas foram apagadas. Para sempre.
Fotos: Alcides Freire Melo