Ao menos 1,76 milhão de pessoas têm alguma forma de demência no Brasil, problema que nas próximas décadas deve atingir o sistema de saúde
Por Ricardo Zorzetto (*)
No início de junho, a psiquiatra e epidemiologista Cleusa Ferri, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), corria para concluir um extenso e importante relatório que apresentará em setembro ao Ministério da Saúde. Elaborado com a participação de especialistas em neurologia, geriatria e saúde mental, o documento reúne as estimativas mais recentes, calculadas pela primeira vez para todo o país, de um problema que nas próximas décadas deve atingir em cheio o sistema de saúde: o aumento dos casos de demência. Com o relatório, os especialistas esperam mobilizar o governo e contribuir para criar uma estratégia de ação nacional para lidar com o tema, algo recomendado desde 2015 pela Organização Pan-americana da Saúde (Opas).
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Há pressa. Ao menos 1,76 milhão de brasileiros com mais de 60 anos vivem com alguma forma de demência, um conjunto de enfermidades sem cura que, por mecanismos diferentes, causam a perda progressiva das células cerebrais e levam à incapacitação e à morte. A maior parte dessas pessoas – uma fração ainda não bem conhecida que, segundo especialistas, pode superar 70% do total – nem sequer tem diagnóstico, o que as impede de receber tratamento adequado para ajudar a controlar as alterações de memória, raciocínio, humor e comportamento que surgem com a progressão da doença.
Cleusa Ferri e a neuropsicóloga Laiss Bertola chegaram a essa estimativa de casos depois de aferir, por meio de testes neuropsicológicos e de competência funcional no dia a dia, a proporção de pessoas que tinham demência em um grupo de 5.249 indivíduos, uma amostra representativa da população brasileira com 60 anos ou mais. As pesquisadoras projetaram a proporção então obtida (5,8%) para o restante da população brasileira da mesma faixa etária medida pelo Censo demográfico de 2010, o último de abrangência nacional então disponível. O número foi, por fim, corrigido para refletir o aumento de idosos na população nos anos seguintes. Os dados foram originalmente publicados em 22 de janeiro em um artigo na revista científica Journal of Gerontology.
Imagem: Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP
De acordo com o trabalho, o total de casos em 2019 é cerca de 20% maior do que o de quatro anos antes, quando se estimava haver 1,48 milhão de pessoas com demência no Brasil. E deve continuar crescendo. A previsão é que chegue a 2,78 milhões no final desta década e a 5,5 milhões em 2050. A proporção de indivíduos com a doença aumenta bastante com a idade, embora especialistas e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmem que a enfermidade não é uma característica do envelhecimento normal. Os dados brasileiros indicam que 3% dos indivíduos com idade entre 65 e 69 anos desenvolvem demência. Essa frequência sobe para 9% na faixa dos 75 aos 79, 21% na dos 85 aos 89 e chega a 43% depois dos 90 anos.
“Conhecer essas informações é crucial para que o país se prepare para lidar com a situação e criar serviços adequados para atender às necessidades dessas pessoas”, contou Ferri, que tentava concluir os cálculos de quanto tempo leva, em média, para surgir um novo caso entre os brasileiros. “No documento, serão feitas recomendações ao ministério e a outros órgãos para que monitorem a evolução do número de casos. Também será indicado em quais ações se deve investir para reduzir o risco de as pessoas desenvolverem demência”, afirma a pesquisadora, cujo pai morreu há cerca de 15 anos com uma das formas da doença.
O aumento dos casos de demência não é exclusividade do Brasil. Em boa parte do mundo, a melhora das condições de vida no último século vem permitindo a mais gente viver mais. Em 2005, havia no mundo cerca de 670 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, o equivalente a 10% do total. Em 2050, segundo projeções da Organização das Nações Unidas (ONU), serão quase 2 bilhões, ou 22% da humanidade.
Com o crescimento da população mundial e o incremento na expectativa de vida, mais casos de demência são esperados. Em um artigo publicado em fevereiro de 2022 na revista The Lancet Public Health, uma equipe internacional de pesquisadores estimou que 57,4 milhões de pessoas viviam com alguma forma de demência no mundo em 2019. Esse número, de acordo com os cálculos, deve crescer 2,7 vezes e chegar a 152,8 milhões na metade do século.
É um problemão que não afetará os países de modo homogêneo e terá de ser equacionado logo. Os casos devem aumentar proporcionalmente mais nos países de média e baixa renda – na América Latina vão triplicar –, sobrecarregando os sistemas de saúde e as famílias. A demência é uma das principais causas de incapacitação de idosos e gera um impacto físico, psicológico, social e econômico tanto para as pessoas com a doença como para quem cuida delas. De acordo com a OMS, em 2019 foi gasto no mundo US$ 1,3 trilhão para atender a pessoas com demência.
“Três fatores explicam o aumento maior nesses países”, conta o neurologista Paulo Caramelli, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coautor de um estudo recente que analisou a evolução dos casos de demência na América Latina. O primeiro é que a população dos países de média e baixa renda está envelhecendo muito rapidamente. Demorou quase 150 anos para a proporção de idosos passar de 10% para 20% da população na França, uma das nações com maior proporção de longevos no mundo, enquanto em países como o Brasil essa transição deve ocorrer em pouco mais de duas décadas. Os dois outros motivos são a melhora no diagnóstico das demências e o pior controle de problemas de saúde – em especial, diabetes, hipertensão e obesidade –, que contribuem para o desenvolvimento delas. “Nos Estados Unidos e na Europa, onde a população já atingiu o teto da expectativa de vida e o controle de fatores de risco é melhor, a prevalência deve diminuir nas próximas décadas”, conta o pesquisador, especialista em demências.
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(*) Ricardo Zorzetto, escreve para a revista Fapesp. Matéria publicada na Edição 329, julho de 2023.
Foto destaque de Sam Lin/pexels.