Atendimento à idosa, 84 anos

Joana não se preparou para o envelhecimento, seus pensamentos são imediatistas, no aqui e agora, voltados unicamente para os filhos. Mesmo, hoje ou ontem, não ter sido um “anjo”, tem direito de ser cuidada por uma instituição ou em casa por cuidadores. Suas vulnerabilidades deixam claro as suas fragilidades nos dias atuais. Os filhos colocam a falta de tempo para os cuidados necessários para com os pais e, eles, por sua vez, são resistentes em contratar cuidadores. Os cuidadores colocados pelos filhos foram todos sabotados por Joana e seu marido.

Susana Beatriz Kouyoumdjian Garcia *

 

atendimento-a-idosa-84-anosJoana (nome fictício), 84 anos, 63 anos de casada, mãe de três filhos homens casados, seis netos, católica praticante, chegou com a queixa inicial de solidão: enquanto tinha meus filhos em casa, tudo estava bem, não precisava de nada, conversava muito com eles, eram meus companheiros e agora…. Segundo seu relato, sente-se sozinha apesar da presença do marido, 92 anos, aposentado, cego por glaucoma e com pouca audição, que pouco participou na educação e criação dos filhos, mas foi um ótimo provedor.

Perdeu-se ao longo do tempo, assumindo inteiramente o papel de mãe, esquecendo-se da esposa e de si mesma, sem ter a própria identidade, tornando-se a mãe de fulano e não Joana, pois não colocava o próprio nome nunca, apesar que este fato causava-lhe incômodo.

Pesquisando ao longo das sessões, as queixas aumentaram e começou a emitir comportamentos que a incomodavam muito, beirando a sensação de vítima, tais como, a falta da visita dos filhos que, segundo ela, teriam a obrigação de visitá-la todos os dias, mesmo deixando as próprias famílias de lado. O marido, apesar da pouca audição e perda de visão acentuada, isolava-se da relação com ela, só esforçando-se perante a presença dos filhos e netos.

A casa é enorme para duas pessoas, mas Joana não aceita a ajuda de estranhos na manutenção e organização da casa, pois irá ser roubada e ninguém sabe fazer o trabalho como deve ser feito e sem desperdício, mas queixa-se e diz não aguentar mais. O tom da sua voz com seu marido não é o dito “normal”, fala aos gritos, pois só assim é atendida. Tem muito orgulho dos filhos “homens de bem”. Eles, por sua vez, sentem pena do pai.

Nesta dinâmica familiar, vivem há muitos anos, escutando as queixas da mãe, que são muitas, tentando amenizar os fatos ocorridos, mas deixando-os sós em casa. Neste momento Joana inicia a queixa de “n” doenças, não constatadas, mas assim tentando chamar os filhos para perto de si. Muitas vezes atingiu seus objetivos, outras não, deixando-a a cada tentativa mais deprimida, sentindo que a vida já não tem valor, pois não é mais necessária àqueles que mais valoriza, seus filhos. A vida da família tornou-se insuportável, para não se aproximar do marido, passou a dormir e acordar cada vez mais tarde. Diz não poder viajar, apesar que demonstra vontade, pois o marido só consegue se localizar na sua casa e não pode deixá-lo sozinho, pois depende inteiramente dela.

Iniciamos a intervenção terapêutica com sessões individuais e algumas com os membros da família, apesar das resistências. Os filhos dizem estar dispostos a colaborar, mas temem as atitudes agressivas da mãe com o pai e as chantagens para com eles.

A família não tem o hábito de escutar os velhos da casa – seus pais – por estarem certos das chantagens da mãe, e assim falam por eles, coisa que ela se queixa muito, sente-se colocada de lado, sem direito a decidir sua vida, não ter mais força para manter sua autonomia, dizendo preferir a morte do que ser tratada assim.

Com o passar do tempo, discutimos sobre o processo de viver, que é solitário, mesmo recebendo a solidariedade dos outros, vivenciando a dor que é dela e que a história de sua vida dá um significado à sua vida atual.

Como escreveu Mario Quintana, cada pessoa pensa como pode, e ela continua a se vitimizar, achando que, assim, trará seus filhos para perto, mas ao contrário, o que está sendo explicitado é que os está afastando a cada dia mais, pois sentem-se saturados de tantas queixas, além de se sentirem impotentes em satisfazer as necessidades dos seus pais sem que isso afete as próprias famílias.

Visibilidade

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O idoso precisa de visibilidade, inserir-se na sociedade e ser respeitado como indivíduo, pois a imagem da velhice está ligada na nossa sociedade a aspectos negativos, doenças, debilidades físicas, desânimo e dependência física, com a clara tendência em estereotipar o envelhecimento como um período de perdas. Joana se sente colocada de lado, pessoa não mais necessária aos filhos.

Estereótipos levam à discriminação que, por sua vez, afeta a qualidade de vida e o bem-estar de quem se encontra em situação de exclusão. Sentir solidão por muito tempo pode levar a problemas de saúde, como a depressão.

Acredita que por não fazerem o que quer, não é amada e necessária para a família, tornando sua vida em um fardo pesado. Assim, ela se apega à religião, adaptando-a ao que acredita ser correto. Diz ter medo de perder o marido, mesmo não o querendo por perto, mas sente ser preciso saber que ele está lá na casa, “como uma cadeira que faz parte da casa”. Está a cada dia mais triste, depressiva, sendo necessário fazer intervenção psiquiátrica, com o auxílio medicamentoso, para auxiliar o processo terapêutico. Demonstra ter medo pela perda de autonomia, pois não consegue fazer caminhadas por problemas ortopédicos, e com isso não pode ir a lugares onde encontra outras mulheres e conversar; demonstrando, às vezes, vontade que tudo acabe, ou seja, morrer.

Segundo Stoppe Jr e Neto (1996), a relação entre o aumento da depressão e aumento da idade partem geralmente do pressuposto de que, com o passar dos anos, os indivíduos estariam mais vulneráveis a perdas fisiológicas, sociais, psicológicas e cognitivas.

As doenças e perdas sensoriais, a aposentadoria e perda de papéis sociais, são algumas das causas da depressão nos idosos, pois parece que a depressão acontece em maior proporção com o passar dos anos em virtude do número de perdas. Mas existem múltiplas trajetórias de envelhecimento, não se limitando apenas a trajetórias depressivas. Talvez os idosos são mais expostos e suscetíveis à ação de variáveis associadas a perdas ou declínio. Com os ganhos e/ou as capacidades de reserva em outros domínios da vida os indivíduos podem compensar muitas das perdas inevitáveis do envelhecimento.

De acordo com a definição de envelhecimento saudável de Baltes e Cartensen (1996), com o passar dos anos, ganhos e perdas são negociados como forma de adaptação. Essa negociação reflete a resiliência e a plasticidade humanas ligadas às múltiplas possibilidades de mudança individual.

Joana não se preparou para o envelhecimento, seus pensamentos são imediatistas, no aqui e agora, voltados unicamente para os filhos. Mesmo, hoje ou ontem, não ter sido um “anjo”, tem direito de ser cuidada por uma instituição ou em casa por cuidadores. Suas vulnerabilidades deixam claro as suas fragilidades nos dias atuais. Os filhos colocam a falta de tempo para os cuidados necessários para com os pais e, eles, por sua vez, são resistentes em contratar cuidadores. Os cuidadores colocados pelos filhos foram todos sabotados por Joana e seu marido.

Os sentimentos de solidão emocional aumentaram com a idade, enquanto os de isolamento social se mantiveram estáveis e são menos frequentes. O tamanho da rede social decresceu com a idade, assim como o suporte social recebido, que se mantém estável.

Joana continua em tratamento, tanto psiquiátrico quanto psicológico.

Referências

BALTES, M. M.; CARTENSEN, L. L. (1996). The process of successful aging. Aging and Society, v. 15, p. 397-422.

STOPPE JUNIOR, A., & LOUZA NETO, M. R. (1996). Depressão na terceira idade: apresentação clínica e abordagem terapêutica. In Depressão na terceira idade: Apresentação clínica e abordagem terapêutica. Lemos.

* Susana Beatriz Kouyoumdjian Garcia – psicóloga clínica. Relato apresentado no curso de extensão: Fragilidades na velhice: gerontologia social e atendimento, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: [email protected]

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