A segunda etapa do Caminho inglês, de Neda a Pontedeume, tem 15km, com paisagens surpreendentes!
No dia a dia, quando caminhamos, carregamos nos passos a proteção de um porto seguro, nossa casa, o que gera a impressão de que a volta é mais fácil e confortável. A peculiaridade do Caminho de Santiago é que andamos sempre para frente, sem volta. O marco indica os quilômetros que faltam e a jornada parece sem fim.
No começo, é melhor ignorá-lo, pois as pernas tremem quando o cérebro informa que depois de andar tanto ainda faltam 97km. É o que observamos ao deixar Neda. Será que vamos conseguir? Mas, ao andar, a adrenalina sobe com a expectativa de sermos surpreendidos com belezas naturais e outras construídas, frutos da criatividade humana.
A segunda etapa do Caminho inglês, de Neda a Pontedeume, tem 15km. O clima está favorável, húmido, nublado, temperatura de 12 graus. Deixamos a rua principal e entramos no Caminho propriamente dito, é quando Neda ganha outra roupagem. Uma igreja centenária oferece seus jardins como passagem, é Santa Maria, construída em 1721, gótica, estilo Tudor. Atrás dela, uma ponte artesanal, um pequeno espaço de descanso para o peregrino observar o Rio Belelle. Daí para a frente, caminhamos em ruas com traçado medieval e, mais adiante, encontramos a antiga Torre do Relógio e traços arqueológicos do que foi o Hospital de Peregrinos do Espírito Santo. Tudo romano.
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A ria deixa a paisagem e, em seu lugar, entra a fazenda, o arvoredo, terras sem fim, propriedade de um grande latifundiário, Deus, que não se importa de vê-la ocupada, mas espera vê-la bem-cuidada, preservada e respeitada. Dificilmente observamos cercas. Quando alcançamos uma vila, tudo é muito bonito, como se os moradores tivessem acabado de pintar suas casas, reformado os telhados, as cercas, podado as plantas e aparado a grama para nos receber em festa. Algumas casas, centenárias, têm beleza própria, que reside exatamente na velhice, no tempo transcorrido, impossível não as fotografar, mesmo caindo aos pedaços, resiliência que nos fortalece e impulsiona para a frente sempre.
Chama a atenção pequenas casinhas suspensas diante de algumas residências. Não são casas de bonecas, são horreos (fala-se óreo), um local para se armazenar grãos (granero), principalmente, mas, também, para curar queijos e embutidos de uma maneira geral. As paredes são vazadas para ventilar os produtos. Aí nos perguntamos: ratos e gatos devem fazer a festa, não? Não. São construções milenares, da época em que os celtas dominavam a região, depois os romanos as aperfeiçoaram, de forma que a maioria tem uma cruz na frente e uma pinha atrás, símbolos da cristandade romana e da fertilidade celta, que convivem lado a lado.
E por que os bichos não atacam? Porque são construídas sobre pilares e assentadas sobre bases redondas, largas (como pregos gigantes com a cabeça bem grande), de forma que o bicho não consegue escalar. Toda vez que tenta, cai. Conhecemos alguns horreos milenares, em igrejas, que antigamente serviam à comunidade, e tem de três a quatro vezes o tamanho de um normal, que vemos em residências pelo Caminho. Tudo é fascinante. São descobertas que vamos saboreando ao ouvir as explicações dos moradores locais. Aliás, por muitos séculos Neda foi considerada o horreo da Espanha, por conta do seu famoso pão, que comemos, evidentemente.
Neda faz fronteira com Fene, cidade engajada contra a violência de gênero (em galego, xenero), pela paz e o desarmamento, frases que aparecem em murais. Fene, como toda a Espanha, abriga uma grande quantidade de pessoas idosas e desenvolve programa de Envelhecimento Ativo (galego, Envellecemento Activo; castelhano, Envejecimiento Activo), que teve um bom impulsionamento em 2013, com um programa intergeracional chamado Construindo Pontes, no qual os idosos contam para os jovens como era a vida nos anos 30, 40 e 50, brincadeiras da época, jogos e canções. Contam, por exemplo, como era viver antes da chegada da energia elétrica. Coisas inimagináveis. As memórias de 14 pessoas idosas foram escolhidas para compor uma coletânea. Com a colaboração dessas pessoas, a cidade recupera sua memória histórica.
A partir de Fene, começamos a encontrar pessoas idosas pelo Caminho. Talvez por sairmos cedo e andar devagar, elas nos alcançam ou as alcançamos quando param. Chama a atenção uma senhora de seus 80 anos, caminhando sozinha. Canadense. Um grupo de homens idosos, entre 60 e 70 anos, italianos, também se destaca. Os italianos são maioria neste dia, depois vem australianos, canadenses, portugueses e espanhóis. Brasileiros, neste Caminho, são poucos, e os povos do Norte, ingleses, principalmente, que batizaram o Caminho, ainda o estão redescobrindo. O grupo de idosos italianos é o mais animado, bebe vinho e brinca com a possibilidade de desistência, cantando como os sete anões: eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou…
A estrela do Caminho é o catalão Francisco, 74 anos, quer dizer, ele não, Mossa, sua linda cadela. Quando cruzamos com ele e Mossa, pela primeira vez, imaginamos ser um morador local. Mas Francisco está no Caminho Inglês depois de ter feito todos os Caminhos dentro da Espanha. Desta vez, porém, com sua cadela, adulta, por considerar o Caminho Inglês fácil. Para tal, adquire um trailer, visto que albergues, pensões e hotéis não aceitam animais. Mossa cansa fácil, portanto, sua regra, única, é andar no ritmo dela. Para animá-la, carrega nos bolsos os biscoitos favoritos de Mossa. Sobre a experiência, ainda no começo, diz que está sendo ótima, pois Mossa chama a atenção por onde passa, é uma golden retriever bonita e dócil.
Por conta dela, conversa com muita gente, faz amizades, e Mossa ganha muitos afagos. Ainda em Ferrol, encontra um taxista que se propõe a apoiá-los. Assim, com essa garantia, começa a jornada. O método vai e volta agrada ao santo. Francisco larga o trailer em Ferrol e segue a pé até Neda. Lá, o taxista o resgata, retornam a Ferrol e Francisco pega o trailer e, com Mossa, segue pela rodovia até Neda. Dormem, para no dia seguinte irem a pé de Neda a Pontedeume, repetindo o vai e volta. Essa engenharia nos encanta e percebemos que podemos nos valer dela a qualquer instante, no nosso caso, desviando da rota para conhecer algum lugar interessante e retornando ao mesmo ponto para seguir com a andança.
Os encontros com Francisco e sua cadela se repetem até Pontedeume, uma cidade linda, ancorada na margem do rio Eume, única cidade galega a manter preservado o centro histórico original. Cruzamos a ponte e entramos na cidade velha, que se estende morro acima, uma pista do que nos espera para o dia seguinte, subida, subida e mais subida. O negócio é descansar bastante, mas antes vamos conhecer um pouco a cidade, o Torreão dos Andrade, a Igreja de Santiago, contemplar a ria, mas falta tempo e pernas para conhecer o Parque Natural das Fragas e o Castelo de Noguerosa. E o convite de Francisco, para comer o melhor polvo galego no restaurante 100 Passos, é trocado por bolas de sorvetes e um verdejo (vinho verde bom e barato). Depois disso, não tivemos mais notícias de Francisco e Mossa.
E a peregrinação continua…
Fotos: Mário Lucena