Neste mal estar civilizacional está em causa a discussão sobre o sentido do progresso/desenvolvimento, a crise ambiental, a realização pessoal e o individualismo.
Estamos num mundo que nos aparece tanto em evolução, como em revolução, em progressão, em regressão, em crise, em perigo. Vivemos tudo isto ao mesmo tempo. E a nossa incerteza é não saber qual destes termos será finalmente o decisivo.” (Tradução Le futur perdu. In Pour sortir du vingtième siècle, Edgar Morin, Ed. Fernand Nathan, 1981)
Maria de Lourdes Quaresma (*)
Crise e futuro combinam de forma recíproca. As incertezas e inseguranças geradas pelas crises são detonadores do inesperado que nos dá a conhecer realidades quotidianas invisíveis São alavancas de uma saudável cultura do questionamento e da dúvida que nos fortalece. Ao invés de excessivas e ilusórias certezas que nos entorpecem. Sabemos que o despoletar desta crise é indissociável do modelo de desenvolvimento globalizado, que o conhecimento disponível há muito permite questionar. Está em causa a discussão sobre o sentido do progresso/desenvolvimento, a crise ambiental, a realização pessoal e o individualismo.
São questões sem respostas prontas a servir, mas são questões que neste intervalo, nesta espécie de tempo suspenso, não devem ser iludidas. Exprimem um mal estar civilizacional que muito saudavelmente a crise revelou. E que convoca todas as disciplinas e áreas do saber.
Fez emergir a falta de sentido ou múltiplos sentidos, contraditórios, avulsos, arbitrários que condicionam as nossas vidas. Não basta salvar vidas, todas as vidas estão em causa quando se pode questionar o sentido da vida, de cada um, como sujeito antes de tudo.
A sociedade adulta que agarrou a crise com grande generosidade e disciplina transporta mudanças, desejos, potencialidades que importa conhecer e reconhecer.
Se é importante não correr riscos induzidos pela vertigem da aceleração do tempo, pois não podemos encurtar o tempo, precisamos de mais tempo, também parece expetável que esse mais tempo dê lugar a uma reflexão reveladora de ideias, caminhos, estratégias e fins a atingir. Reveladora também e, não menos importante, da consciência dos erros cometidos e da capacidade de arriscar. Sabendo que nunca eliminaremos o erro. E que ele é portador de mais crises e que estas alavancarão novos futuros que exporão novos erros.
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- 15/12/2019
As questões que se nos põem neste momento, radicam, pois, por um lado, na incerteza face os erros que inevitavelmente iremos cometer, e por outro na necessidade de reconhecimento dos cometidos, quer concetuais, quer processuais, quer de avaliação de cada ciclo de poder. Deste reconhecimento depende a clarificação das premissas que conduzem esta suposta fase de viragem.
A crise expôs fragilidades, desigualdades e intoleráveis violações dos direitos humanos. Revelou também o melhor que entre nós permanece vivo. A génese das primeiras é estrutural, radica em pressupostos, concepções da sociedade e de culturas de poder que ora tende a ignorar os erros, ora tende a desvalorizá-los. Talvez pela complexidade crescente e cumulativa dos problemas a enfrentar, no labirinto das contradições, das pressões, da lógica do possível como o melhor.
O pior erro é ignorar o erro (Edgar Morin). Na situação atual, de há muito uma das mais complexas, o risco será, numa lógica de banalização dos erros, considerar que desigualdades, injustiças, pobreza, se diluirão na espuma dos dias. Ora, precisamos de virar a página, sair da crise que vivemos. Mas não podemos deixar de atender e empreender a resolução dos problemas que ela revelou.
O depois da situação atual, ou será a aposta numa sociedade mais justa, mais saudável, mais dinâmica mais criativa e mais reflexiva, ou poderá aterrar numa depressão muito mais grave que a que hoje arriscamos. É uma missão gigantesca, mas valerá a pena. O contrário será o desânimo de um futuro melhor para uma maioria, já ameaçada pelo impacto das transformações tecnológicas nos diferentes setores da economia. Um desânimo para os que confiam na proteção social para todos, tal como no acesso ao conhecimento, no valor da inovação e da criação reconhecida.
Precisamos de construir os alicerces de novos horizontes em que todos ou uma grande maioria possa rever-se e mobilizar-se. A crise é dolorosa, mas avivou o desejo de mudança. Fez emergir o que não está bem, mas que está ao nosso alcance corrigir ou melhorar.
Atrevo-me a admitir que a tolerância com que aceitámos fortes restrições à nossa liberdade quotidiana alinham com a descompressão do discurso tecnocrático e burocrático num contexto de valorização dos direitos humanos, em que a entrega incondicional de alguns ao serviço de todos e a vaga de iniciativas solidárias e empreendedoras enchem o espaço publico. Sentimo-nos frágeis, vulneráveis, de certa forma impotentes, mas também mais iguais, mais pessoas. Mais realidade humana confrontada com a experiência maior da relação vida e morte.
Sentimo-nos mais parte do mundo dos humanos, porque este sentido de humanidade estava em falta. Reconhecê-lo será uma âncora do futuro, inevitavelmente difícil, mas para que ele não seja trágico.
Questões do futuro próximo
Parece ser consensual a necessidade de saída gradual dos constrangimentos que atingem o relacionamento social, a atividade económica e as atividades culturais. Já o como fazer levanta interrogações e mesmo sérias divergências. Talvez porque o como não deva preceder a procura dos porquês e para quê, remetem para o que vamos mudar e porque vamos mudar. O que vamos corrigir e o que queremos atingir. O que queremos experimentar e porquê. O que é transitório e o que tem uma base previsional
Podemos perguntar:
As iniciativas que emergiram um pouco por todo o lado, representarão o quê? Serão motores de mudanças depois de terem revelado o nervo das capacidades de resolução de problemas, libertando-se de burocracias obsessivas e bastas vezes bloqueadoras da razoabilidade das decisões a tempo e no tempo?
A questão ambiental nas suas múltiplas e complexas interdependências com o desenvolvimento social e económico, é um eixo estruturante da reflexão que prepara o futuro?
Que vamos fazer face a situações gritantes, ontem invisíveis hoje à luz do dia, desde a institucionalização de pessoas mais velhas às degradantes condições de vida de muitos imigrantes que prestam um sem nº de serviços que consumimos no nosso quotidiano?
A ilusão dos pequenos empregos como entrada dos jovens na vida ativa, mostrou as suas terríveis fragilidades, o que quer dizer pôr em causa o seu futuro de adultos. Não podendo ignorar o papel do sistema de proteção social, será que iremos equacionar esta questão?
Estaremos a “produzir” uma nova geração de pobres, pobres até ao fim da vida?
O que “esconde” esta “categoria” das pessoas 70 e mais anos, ou melhor, o que parece aberrante nesta categorização? Sabemos que o agismo não pode contaminar a agilidade e necessidade de decisões políticas que protejam todos agora e no futuro.
Aliás, é hoje consensual que o marcador idade vem perdendo importância na definição das diferentes fases da existência. A idade, para além de indicador do tempo vivido e do que é previsível viver, é sobretudo um risco quando associada a problemas de saúde contraídos ao longo da vida, muitas vezes por situações sociais e económicas frágeis.
Importa ter presente que Portugal está entre os países da UE com mais baixa esperança média de vida saudável aos 65 anos. Situação que se agravou entre 1995 e 2018. O que não será indiferente ao aumento constante e progressivo da esperança de vida. O acesso aos cuidados reduziu as desigualdades perante a morte. As desigualdades de qualidade de vida, geradoras dos problemas, são mais dificilmente reversíveis. Ou não, importa perguntar.
Não se procuram deduções fáceis ou demasiadamente óbvias. Trata-se apenas ter em conta a pluralidade dos fatores que condicionam os trajetos pessoais. E trata-se também de garantir o respeito pelas subjetividades que fazem de cada um ser único, responsável pela sua vida até ao fim.
Sabendo que a incerteza continuará presente nos quotidianos de todos, novos e velhos, ainda que com experiências e horizontes bem distintos. Os novos na busca de caminho que estruture um futuro longo, e os mais velhos na reflexão do sentido para o tempo que lhes resta. Todos estão na história não desistindo de tecer a sua própria história. Todos vivemos tempos incertos, mas nem todos enfrentamos as mesmas incertezas.
Os novos sabem que o caminho da vida os levará até idades avançadas, é um futuro longínquo, com percurso imprevisível (a crise o acentuou); os mais velhos sabem como lá chegaram e procuram a dignidade, talvez mesmo a beleza da chegada ao fim de uma história sem a qual os mais novos não existiriam. Entre estes, os do meio interrogam-se sobre a consistência dos adquiridos e questionam-se como projetar o futuro
No sair da crise encontramosum ambiente mais respirável, há menos acidentes, parece que a atividade criminosa diminuiu, a natureza solta-se. Vamos descobrindo uma primavera que parece diferente e que talvez observemos com outro olhar. As ruas vão-se povoando, os jardins estão menos solitários.
O ambiente relacional estará em transição. Não podemos ignorar que o distanciamento físico, que também foi social, terá efeitos no depois. O confinamento é transitório. Foi e é duro. A relação virtual, desencarnada, é uma relação que de algum modo nos fraciona, num contexto, já por si, de fracionamento da realidade. A compreensão do todo parece inacessível.
Da especialização do saber à especialização do fazer, das especificidades locais, culturais, aos grupos de risco, o nosso pequeno mundo, dentro do grande mundo a que nos sentimos pertencer, parece cada vez mais pequeno. Não é novo, mas é vivido como algo de destituição da capacidade de dar e receber, definir um rumo, avaliar o desejável e não desejável para si. Experiência que não será a de todos, nem da mesma maneira, mas que poderá ter fragilizado os mais frágeis, em especial os que já viviam a experiência da solidão.
(*) Maria de Lourdes Baptista Quaresma – Licenciada em Ciências Sociais e Politicas, pelo ISCP; Licenciada em Ciências Sociais e Humanas, na área das Ciências da Conduta, da Universidade Nova de Lisboa e DEA (Diplôme d’ Études Approfondies) em Sociologia Urbana na Universidade de Nanterre, Paris X, Implementou e coordenou a Pós-Graduação em Gerontologia Social, no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, 1998/2006. Autora e coautora de artigos e publicações sobre a problemática do envelhecimento em colaboração com entidades nacionais, e internacionais. E-mail: [email protected]
Foto destaque: Porapak Apichodilok/Pexels
Atualização às 16h42
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