Sabia que não sobreviveria à infecção, embora não me importasse em morrer. Como dizer adeus a uma vida que está terminando?
Em setembro do ano passado, faleceu o psicanalista argentino-mexicano Néstor Braunstein (1941-2022). Médico, psiquiatra e psicanalista argentino-mexicano e autor de dezenas de artigos e livros, sua última obra foi esta carta[1]: uma despedida pessoal, também uma meditação sobre a velhice e o morrer.
Adeus
Vi muitas óperas, em diferentes idiomas; muitas vezes, longos espetáculos conduzidos à palavra final: addio. Agora, posso dizer que também assim são as vidas humanas, assim é a minha vida.
Como dizer adeus a uma vida que está terminando? O habitual, o de praxe, o normal, é esperar – indeterminadamente – a morte, por sua vez decorrente de uma doença ou de um acidente. Entendo que seja considerado estranho, ou mesmo patológico, que um ser humano, em algum momento, cometa suicídio com plena consciência dos motivos e das circunstâncias que o levaram ao ato.
Para quem fui – e continuo sendo –, “plena consciência” é uma expressão ambígua, até irônica, dada a participação do inconsciente em todos os atos, especialmente neste final, a passagem da vida para a morte. (“O inconsciente não conhece a morte nem acredita nela”).
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No meu caso, deixo a vida sob protesto pois a amo. (Morte? Sou terminantemente contra). Posso dizer que não sou eu quem me afasto da vida, mas que é a vida que, pérfida e obcecadamente, se afasta de mim. Vivo essa situação com tranquilidade, sem angústia, sem a sensação de cansaço ou de tédio.
Atesto o progressivo e irreversível declínio de minhas capacidades vitais. Consultei muitos especialistas e, sem objeções, submeti-me a diversos exames. O acúmulo de diagnósticos sobre minha condição vascular, respiratória, renal, locomotora, neurológica, dermatológica etc. foi esmagador.
Meus médicos tentaram, reiteradamente, me encorajar: “Sim; seus órgãos estão mal, mas não esqueça que, com a sua idade, maior que 80 anos, pode continuar a viver, ainda que não haja meios para melhorar o que está falhando”. Sigo fielmente, ao pé da letra, o que me foi prescrito. Meus médicos são todos excelentes. Da dr. María del Pilar Brito, coordenadora da equipe, me despeço agradecido pela atenção afetuosa.
Não posso deixar de aceitar os veredictos da ciência. Reconheço que, em muitos aspectos, minha atual condição é privilegiada: não tenho dores nem passo por processos progressivos que preveriam o momento da minha morte. É verdade que meu corpo e minha mente (permitam-me o dualismo), que estiveram a meu dispor estas décadas, agora me pedem para inverter a relação: sou eu quem devo me ocupar deles. Meus amigos se despedem de mim com um “cuide-se” porque sabem da precariedade da vida nesta idade – ainda mais com as minhas mazelas.
Amigos meus: eles. Muitos, maravilhosos, afetuosos, sempre presentes, dispersos em vários países e dispostos a me ajudar, como também sou para ajudá-los quando preciso. Nenhum estará junto a mim no momento final; encarrego-me de enviar esta carta de despedida a eles. E à minha família: Clea, minha filha, herdeira universal de meus bens – conforme meu testamento assinado em Barcelona em 2020 –, minha irmã, minhas sobrinhas e seus descendentes. Creio ter feito e deixado o suficiente para que possam resolver suas necessidades materiais de acordo com seus próprios critérios e valores.
Em poucas palavras: não estou solitário, “deprimido”, tampouco melancólico. Viverei meus dias até que esta carta, ainda sem data, seja enviada; seguirei de acordo com a regra que me impus, principalmente depois do início da pandemia em 2020: Carpe diem.
Desde então, tomei muitas medidas para evitar o contágio, mas não deixei de viajar tanto quanto pude. Compareci a óperas, exposições, concertos, filmes, templos, conferências presenciais etc., conforme tive vontade e oportunidade, compreendendo a posição, ainda que pouco sensata, dos muitos que, por toda a parte, deixaram de viver para viver.
Com frequência me senti imprudente, porém, a longo prazo, passei a acreditar que tive razão, sem negar o bom senso de quem optou pela proteção máxima proporcionada pelo isolamento. Sabia que, dada a minha idade e a minha vulnerabilidade, não sobreviveria à infecção, embora, em virtude ao caso, não me importasse muito em morrer de acordo com o lema de Horácio, pois já estava “amortizado”: nada poderia reclamar da vida, nada a vida poderia reclamar de mim.
Com poucas exceções, desde o fim do ano passado, deixei minha prática com analisandos e supervisionandos sabendo que a interrupção, ao azar de uma notícia recebida por correio a uma distância transoceânica, seria traumática, mas desejada. Nos últimos anos perdi seres queridos, muito queridos, por outro lado, reforcei os laços com velhas e novas amizades.
Nesses anos, recebi três homenagens pelas quais sou grato; não foram imerecidas, mas inesperadas, até surpreendentes, pois não havia corrido atrás delas: o doutorado honoris causa da Universidade de Xalapa, Veracruz (2020); o convite para ministrar a IL Conferência em homenagem ao fundador da psicanálise em Bergasse 19, no Museu do Freud em Viena (2021); e o pedido para escrever o texto de abertura da seção em espanhol do European Journal of Psychoanalysis (2022).
Novembro passado, tive que declinar o generoso convite do Museu Sigmund Freud pois tive indícios de que minha condição física me impediria de viajar (justamente quando escrevo estas linhas, em maio de 2022) e de tocar a conferência e as discussões em línguas que não domino. O Museu aceitou minha recusa por motivos de saúde, e manteve a nominação. Já o ensaio para a EJP (“A psicanálise na línguacastelhana”) foi escrito e está pronto para ser publicado este ano.
Volto ao tema do suicídio, que tão frequentemente está sujeito a diagnósticos selvagens, a interpretações desbocadas ou descabeladas, a desqualificações precipitadas que ignoram suas razões, esquecendo até mesmo o (antecedente do) suicídio assistido solicitado por Freud na primeira consulta com seu médico em 1928, e o consentimento deste (Max Schur) quando chegou a hora, em 1939; esquecendo também o fato que poucos ousam abordar, como se ele guardasse alguma vergonha: Lacan deixar-se morrer por negligência voluntária, uma vez que se autodiagnosticou com uma doença curável, mas se recusou a receber qualquer tratamento (talvez, segundo os muitos testemunhos, por ter percebido com precisão os transtornos neurológicos que acompanharam seu declínio físico e mental a partir de 1979); ignorando, enfim, as proposições éticas dos muitos partidários da “morte digna”, da eutanásia e do suicídio assistido.
Esses casos não são fruto de um triunfo da “pulsão de morte”, conceito cômodo, sempre na mangapara desqualificar um suicida – como fazem as religiões monoteístas e a psicanálise, que não é derivada delas. A denominada “passagem ao ato” é, em muitos casos – como o meu –, uma decisão soberana do sujeito que se opõe à morte passiva e consensual, aquela que o mundo aceita sem questionar. É uma ação diante de um impasse, não um homicídio por “voltar-se contra si mesmo”; é uma manifestação suprema do impulso pela vida, da inscrição indelével da liberdade que nada seria sem a possibilidade de dizer “até aqui”.
Somos forçados a repetir que tudo que o organismo quer é se apropriar de seu caminho até a morte, eigenes Weg zum Tod[2]? Recordemos o texto de 1915, no qual Freud evocou o adágio de Vegécio, si vis pacem para bellum[3], e o transformou em um lema norteador, comparável ao carpe diem horaciano: si vis vitam para mortem?[4] (Wenn du das Leben aushalten willst, richte dich auf den Tod ein). Que outra coisa é viver senão antecipar a morte e apropriar-se do caminho em direção a ela?
O suicídio premeditado, decidido em diálogo com o outro, sendo este capaz de ouvir o sujeito e refletir com ele sobre a decisão de encerrar a vida sem esperar o que o destino lhe reserva, é um ato pleno de sentido, não um abandono diante de um impulso irracional, uma “passagem ao ato”, como frequentemente casos trágicos são denominados.
Sabemos as duas formas pragmáticas de morte escolhida: a cristã, que termina em dores insuportáveis e reclamação ao Pai (eli eli); e a socrática, de quem bebe a cicuta sem amargura, sem reclamações, sem queixas, rodeado por um círculo de amigos e discípulos. Procurei em vão a frase na Apologia e no Fedón de Platão, mas foi o uruguaio José Enrique Rodó quem a atribui a Sócrates: “para quem me derrota”. O suicídio do filósofo foi forçado pela pólis, porém ele poderia ser evitado levando seus ossos e seus tendões para Mégara ou para Beócia. O filósofo escolheu seu próprio caminho, preparando-se para “suportar a vida” e terminá-la com serenidade (Gelassenheit).
E quanto a minha decisão… ganhei o direito de morrer à minha maneira, sem sangue, em Barcelona, cidade que mais amo dentre tantas que conheci, no momento que escolhi, podendo ter esse sido antecipado ou postergado, e em solidão para que ninguém possa ser acusado de ter participado de uma ação que, apesar das recentes modificações legais, impede a ação direta e impõe trâmites burocráticos que estorvam a vontade do suicida.
O pequeno frasco chegou em minhas mãos há muito tempo. Sabia que não me precipitaria em usá-lo. Não o fiz quando tive vontade, mas sim quando o teste de realidade revelou linhas vermelhas que não me permiti ultrapassar: o não reconhecimento de lugares, de pessoas e de espaços; a perda da capacidade de desfrutar da arte, do conhecimento do mundo em que vivo (política, social e economicamente) e da autonomia para me prover o que preciso, pois vivo sozinho; recuso-me a depender de alguém para cuidar de mim. O horror dos horrores seria ser transferido para uma residência de idosos, na qual esperaria passivamente meu fim em meio a horários, companhias impostas, dores ou ossos fraturados.
Nos últimos meses sofri quedas das quais me recuperei, mas que me levaram ao diagnóstico neurológico de parkisonionismo vascular; minha motricidade, especialmente a das mãos, está muito limitada (não consigo, sem recorrer a abridores, destampar uma garrafa d’água). Até agora tenho conseguido caminhar livremente, mas não posso imaginar-me viajando sequer para Madri, onde me sentiria muito feliz. Dei as autorizações necessárias para a disposição do meu cadáver e a dispersão das minhas cinzas, agradecendo aos meus bons amigos que cuidarão disso sem ritos fúnebres.
O que eu tive até o dia de hoje? O gozo da vida com a aceitação do mal-estar da velhice: pude ler e me entusiasmar com novas ideias e com o humor swiftiano da escrita de minha filha, sofrer com os pesadelos da História dos quais não podemos despertar, assistir a manifestações artísticas, desfrutar de amizades, sabores, sons, paisagens, visões, filmes e, apesar dos pesares, seguir escrevendo – não com a proficuidade de meus melhores anos, mas sim lutando com as palavras, cometendo uma infinidade de erros tipográficos que exigem intermináveis correções… Agora entendo, por experiência própria, o estilo tardio (Edward Said) dos escritores velhos. Ainda me espera uma última revisão desta carta de adeus antes de lhe atribuir uma data, esperando que esta não se adiante da assinatura e do envio do e-mail.
Não há nada a acrescentar: como escrevi em 1990 (Goce), o suicídio é a forma mais direta de vício. Daí a passagem forçada para a escrita, aqui rubricada com minha assinatura.
Barcelona, 07 de setembro de 2022
Néstor A. Braunstein
Notas
[1] Tradução de Paula Akkari. Original disponível em: https://www.elsigma.com/columnas/sobre-el-adios-de-nestor-braunstein/14187
[2] Próprio caminho para a morte
[3] se quer paz, prepare-se para a guerra
[4] Se quer aguentar a vida, prepare-se para a morte
Foto destaque: wikipedia