Torna-se cada vez mais necessário diferenciar custos e preços dos medicamentos e denunciar os abusos praticados em nome do lucro.
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Jorge Bermudez (*)
A questão de acesso a medicamentos vem ocupando debates nos mais variados foros em escala global. Ficou claro no processo do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-Geral das Nações Unidas (ver aqui e aqui) que não se trata mais de problema restrito a países de média ou baixa renda, mas hoje representa um problema de natureza global que também compromete as populações dos países do Norte. O lançamento de novos produtos, processos e tecnologias a preços extorsivos e inaceitáveis inviabiliza qualquer sistema de proteção social, público ou privado. Já nos referimos à voracidade e falta de limites da indústria farmacêutica, que, com seus monopólios, de fato ou de direito, impede a concorrência e inviabiliza o acesso a produtos considerados essenciais.
No final de 2018, e adentrando este
ano, a imprensa noticiou o embate nas tentativas de se impedir o fornecimento
ao SUS de Sofosbuvir, medicamento para hepatite C, produzido no país e ofertado
a preços inferiores aos praticados pela indústria de capital transnacional, que
a qualquer custo, pleiteou proteção patentária e utilizou todas as
possibilidades judiciais para bloquear a concorrência.
Agora, estamos acompanhando o movimento iniciado por grupos da sociedade civil
– o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) da Rede Brasileira
pela Integração dos Povos (Rebrip) congrega diversas organizações da sociedade
civil, movimentos sociais e especialistas ligados ao tema da propriedade
intelectual e acesso à saúde no Brasil –, que buscam no INPI a nulidade
administrativa da solicitação de patente do Daclatasvir, utilizado
conjuntamente com o Sofosbuvir para o tratamento da hepatite C. A argumentação
para a nulidade da concessão dessa patente é a insuficiência descritiva, que
não permite a reprodução da tecnologia na forma como a descrição foi fornecida
pela empresa ao INPI.
Louvamos o GTPI por mais uma iniciativa coerente e compromissada com a melhoria
da saúde da população e o acesso a medicamentos no Brasil. Um contingente
estimado de 15 mil pessoas, hoje, está em tratamento com a combinação
Sofosbuvir/Daclatasvir, e sujeitas ao vaivém das pressões econômicas da
indústria, em detrimento da concepção social do acesso como direito. O
tratamento aqui ainda representa um valor superior ao praticado em outros
países, em especial aqueles onde há versões genéricas ou produção local. Na
verdade, torna-se cada vez mais necessário diferenciar custos e preços e
denunciar os abusos praticados em nome do lucro.
O que podemos esperar, com nossa Constituição sendo rasgada, e a EC-95/2016
estabelecendo o teto dos gastos públicos e inviabilizando o cumprimento do
artigo 196, que afirma a saúde como direito de todos e dever do Estado? Desde o
ano passado, vêm sendo debatidas propostas de desmantelamento do SUS, que
contam com o apoio de políticos, do Poder Executivo e da Federação Brasileira
de Planos de Saúde. A estrangulação do financiamento e uma maior participação
do setor privado soam como música para a proposta recentemente tornada pública
e debatida pelo Banco Mundial – Propostas de reformas do Sistema Único de Saúde
brasileiro (ver mais aqui). Essa proposta do Banco Mundial
inclui entre suas recomendações “definir um pacote de benefícios a ser coberto
pelo SUS”, elencando parâmetros para decidir o que seria ou não coberto, com
base no acesso a medicamentos por demandas judiciais. Nitidamente, trata-se de
postura excludente e discriminatória, em desacordo com nossos 30 anos do SUS,
modelo para o mundo e hoje em franco processo de desmonte.
A evolução crescente do gasto com medicamentos pelo SUS e a incorporação de
novas tecnologias com preços elevados são incompatíveis com o congelamento dos
gastos públicos e com a proposta do atual governo de desvincular todas as
receitas da União, dos estados e municípios e acabar com as obrigações
constitucionais de investimento mínimo em previdência, saúde e educação. São
sinais de que tempos difíceis teremos a enfrentar. A Agenda 2030 e os Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável, dos quais o Brasil é signatário, precisam ser
respaldados por uma estruturação de políticas econômicas e sociais que cumpram
uma agenda estratégica de desenvolvimento, na mão contrária aos desacertos que
diariamente ocupam as páginas dos noticiários com as peripécias do atual
governo.
Como aprovamos recentemente no 8º Simpósio Nacional de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica, realizado na Fiocruz em dezembro de 2018, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a defesa intransigente da Democracia e da Constituição Cidadã de 1988 nos dão as bases para a defesa do SUS, a reafirmação da Política de Ciência e Tecnologia em Saúde e uma Política Nacional de Assistência Farmacêutica “como ação estratégica para o fortalecimento da capacidade do Estado em garantir o acesso e uso adequado de medicamentos e tecnologias”.
Temos pela frente o desafio de defender nossa soberania, nosso desenvolvimento e cumprir nossa Constituição. Acima de tudo, temos a obrigação de resistir e lutar para transformar nossa utopia em realidade e legar um país mais justo e igualitário para nossas futuras gerações.
(*) Jorge Bermudez é coordenador do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (NAF/ENSP). Fonte(s): Centro de Estudos Estratégicos (CEE-Fiocruz). Publicada em 25/04/20
