Os poemas sobre envelhecer, escritas por Mia Couto, narram a velhice que habita em nós hoje, ou que habitará amanhã.
Mia Couto tem 66 anos: já entrou na velhice. Nestas décadas, foi principalmente escritor – com seus romances, contos e poemas, tornou-se um dos maiores nomes da literatura moçambicana contemporânea. Em 2007 publicou uma de suas incursões na poesia. Em Idades Cidades Divindades, não sendo velho, mas carregando um certo tempo, reuniu suas meditações sobre seus lugares e seus anos. Biográficos e delicados, aqui estão os seus poemas sobre envelhecer:
Sono coloquial
Da velhice
sempre invejei
o adormecer
no meio de conversa.
Esse descer de pálpebra
não é nem idade nem cansaço.
Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia.
(Beira, 2006)
O espelho
CONFIRA TAMBÉM:
Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.
Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me, a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.
A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.
(Maputo, 2006)
A lentidão da sede
(…)
Um dia, me cumprirei,
findo e final,
como os bois se acercam do bebedouro.
Um dia,
serei bebido pelo céu.
(Boane, 2006)
A adiada enchente
Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.
Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
Gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as palavras.
Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome.
(Maputo, 2005)
O tempo e seus suspiros
Deito-me
para desinflamar
a angústia.
Aos poucos,
meu cansaço
vai perdendo convicção.
A velhice é uma insónia:
deitamo-nos
e quem dorme é a cama.
(Maputo, 2006)
O piso e o passo
Envelheço como o sapato:
quanto menos sirvo
menos aleijo o chão.
Antes,
eu buscava
conhecer um lugar.
Agora,
apenas quero
um lugar
que me conheça.
(Maputo, 2004)
A metafísica de silvestre vitalício
(…)
Para o velho Silvestre
não há a Morte. Apenas os mortos existem.
A alma é uma sombra
sem terra onde desaguar.
Por isso, Silvestre Vitalício
não entende porque,
para mim,
o Universo
não possa caber,
inteiro, no seu suspiro.
(…)
Para mim
a metafísica é esta: Vitalício,
meu velho amigo Silvestre Vitalício,
está morrendo
e a minha mão é uma sombra
sobre o seu agonizante rosto.
Vai partir
e me pede que não lhe feche os olhos.
Não é ele quem vai dormir.
A folha dorme,
a semente sonha.
Os pés inchados
sobram dos últimos sapatos.
A areia presa à sola
é a única terra que o irá cobrir.
(Boane, 2006)