A velhice e o Covid-19 – a gerontofilia

Posso mais facilmente aceitar a morte dos velhos pela gerontofilia do vírus. Afinal eles já viveram muito, não contribuem mais, são um peso social, são onerosos, enfim é a filia do vírus.

Evaldo Cavalcante Monteiro (*)


Ao tratarem do covid-19 observa-se que tem sido enfatizado que o vírus seria mais letal aos velhos, que teria, portanto, uma gerontofilia. Comecemos, pois, pela questão: o que seria a velhice? A velhice é uma etapa da vida que assim como as demais, infância, adolescência, juventude, adultez e a maturidade, tem suas singularidades e implicações nas múltiplas esferas que dizem respeito ao ser humano. Adotaremos, aqui, a física e a social. Divisão meramente didática, posto que na prática se encontram imbricadas.

A entrada neste ciclo de vida tem sido marcada pelo critério cronológico. Este foi definido pela Organização Mundial de Saúde – OMS, a qual estabelece duas idades: a de 65 anos para os países ditos desenvolvidos e a de 60 para os ditos em desenvolvimento. Assim, a OMS reconhece fatores externos, as condições de vida, são determinantes para velhice. Consequentemente, o Brasil adotou os 60 anos no seu critério cronológico.

Quanto ao aspecto físico, pode se afirmar que este apresenta padrões fisiológicos, em geral, diminuídos em relação a adultez. Inclusive no mecanismo de defesa às agressões externas, que permitem o restabelecimento da saúde física. Além disso, quanto mais a existência se prolonga mais tempo teremos para desenvolver doenças crônicas e degenerativas. Apresentadas como comorbidades nas discussões do Covid-19.

A característica de diminuição da responsividade no restabelecimento da saúde se relaciona diretamente com a letalidade do vírus. Em tese é a diminuição da capacidade de restabelecer a saúde, pois, na prática há uma série de elementos determinantes tanto da higidez quanto da capacidade responsiva, a saber: fatores genéticos, estilo de vida e acesso a serviços de saúde para prevenção, tratamento e reabilitação, isto implica, também, em exames e medicamentos.

Considerando os três elementos determinante da higidez e da responsividade ao retorno à saúde dos velhos, pode-se imputar, em parte, o estilo de vida como de responsabilidade dos sujeitos por suas escolhas. Escolhas? Um exemplo contemporâneo que pode ser usado: o estilo de vida estressante das cidades, o tempo destinado ao trabalho e os cuidados consigo da alimentação. A redução do tempo tem sido respondida com os fast-foods, a indústria alimentícia com sua praticidade oferece produtos excessivamente processados, com elevado teor de sódio e açúcar, sem considerar que a mídia entra na formação dos hábitos alimentares. Costumes estes que são tanto uma questão de Segurança Alimentar e Nutricional quanto de Saúde Pública.

Desta mesma forma, o quadro de saúde dos velhos de hoje reflete o estilo de vida pretérito, assim como a possibilidade deles terem tido acesso ao serviços de saúde. Vale lembrar que somente no final dos anos 80 é que a saúde passou a ser direito de todos, neste sentido os velhos não tiveram acesso fácil aos serviços de saúde. Em assim sendo, a gerontofilia do covid-19 diz respeito mais da conjuntura social, econômica e política vivida pelos idosos que de uma condição individual, a qual possa lhes ser imputada a responsabilidade.

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Além disso, para entender dita gerontofilia se faz necessário recorrer à história recente da humanidade: a ameaça de uma doença desconhecida. Neste momento parece se lançar mão da identificação de um público alvo, a filia, para nos colocarmos fora do alcance desta. Assim se deu com a aids, peste gay, cuja maioria não homoafetiva estaria protegida. Até que tempo mostrasse que não era bem assim, que não haveria grupo de risco, mas comportamento de risco. Desta forma TODOS tornaram-se passíveis de contaminação.

A situação descrita pode redundar na seguinte operação: o rechaço provocado pelo estigma social, neste caso, ao velho, é somado ao estigma da doença, em um único movimento circunscreve em um só locus seus temores. Consequentemente mais fácil de lidar com os temores aos desviantes, aos diferentes de mim e às ameaças.

Posso, mais facilmente, aceitar a morte dos velhos pela gerontofilia do vírus. Afinal eles já viveram muito, afinal eles não contribuem mais, afinal são um peso social, afinal são onerosos, afinal perdemos a previdência por causa deles, enfim é a filia do vírus. Não sou eu, nem de modo algum é minha gerontofobia que guia as minhas escolhas.

Considerando o exposto pode-se dizer que a gerontofilia está muito mais arraigada a aspectos, sociais, econômicos, culturais e de saúde pública do que da velhice em si. A gerontofilia é mais uma consequência, e não uma causa. Se há uma falta de prontidão no atendimento no sistema de saúde, há que se perguntar quanto tem sido investido nele ante real necessidade da população, considerando o perfil que ela apresenta.

(*)Evaldo Cavalcante Monteiro – Terapeuta Ocupacional, Especialização em Gerontologia Social, Administração Hospitalar, Abordagem Sistêmica da Família e Método Terapia Ocupacional Dinâmica, Mestrado em Gerontologia Social e Doutorado em Educação e Professor da Especialização em gerontologia da Universidade de Fortaleza – UNIFOR.


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