Covid-19, população idosa e os sistemas de saúde pública

É difícil convencer certas mentes que saúde é investimento. Como o Brasil envelhece rápido, temos pouco tempo. Uma das principais tarefas é a conscientização social sobre a importância do SUS. A sociedade não irá defender o sistema de saúde pública se o desconhece. Suas origens, seus defensores e seus detratores. Como torná-lo ainda mais eficiente e como defender seu custeio? Essa é uma grande tarefa para universidades e comunicadores logo depois da Covid-19.


A longevidade humana no nível do século XXI é um fato histórico inédito para todos os países. A Covid-19 vem nos mostrar o quanto estamos despreparados para o desafio do envelhecimento populacional. Um dos maiores gargalos é o sistema de saúde pública. Em todo o planeta. No nosso caso, o nosso SUS, uma das maiores conquistas da redemocratização do país. Mas seu processo de construção e implementação ainda é totalmente desconhecido. Pena. O que é SUS? Como foi elaborado? Quem teve essa ideia? E, principalmente, quem lutou por ela. Se hoje a população reclama de filas, muitas pessoas deveriam saber que, se dependesse de alguns políticos, nem fila teriam. Pois é…

Desde muito tempo, a Organização Mundial da Saúde vem alertando, em relatórios sobre o envelhecimento da população mundial, sobre a urgência de os países adaptarem seus sistemas para a nova dinâmica demográfica. Quase todos os sistemas na grande maioria dos países têm um foco da cura de doenças. Ou doenças virais e bacteriológicas ou extremos que chegam quase à emergência de guerra – como é o caso do sistema no Rio de Janeiro, moldado pela violência urbana. A OMS alertou que, diante do envelhecimento populacional, os sistemas precisariam se adaptar para as doenças crônicas, as epidemias e seus picos.

A transição demográfica leva naturalmente à transição epidemiológica, principalmente Alzheimer, Parkinson, doenças cardiovasculares, diabetes entre outras. O segundo ponto dessa adaptação são epidemias ou pandemias como a que vivemos agora. A transição epidemiológica já demanda muito mais leitos de UTIs para idosos e as epidemias, segundo alertou a OMS, também pressionariam o sistema. Era necessário, sempre, ter um plano de emergência, como ocorreu na China, onde em poucos dias milhares de leitos de UTI surgiram de um terreno vazio. Qual país tem essa capacidade?

Em alguns documentos ou pesquisas, a OMS afirmava que esses surtos ocorreriam à medida que as mudanças climáticas se acentuassem porque quase todos os vírus são zoonoses. Desde o HIV no fim da década de 1970. Se sabemos que os idosos têm um sistema imunológico mais vulnerável, claro, eles seriam as principais vítimas. Os sistemas de saúde precisariam também ter uma capacidade maior de comunicação com a população. Em casos emergenciais, campanhas massivas devem ser detonadas para informar o mais rápido possível, por meio de fontes confiáveis. Construir um canal de comunicação de credibilidade é fundamental para o SUS. Sobretudo em relação aos idosos.

Em quase todo o planeta, a política de austeridade fiscal ignorou essas recomendações da OMS. Ignorou mesmo a dinâmica demográfica. Fez exatamente o contrário. Em países onde há exemplo de saúde pública, a intenção da política neoliberal sempre foi a privatização. O historiador liberal Tony Judt lembra em seu livro “Pós-guerra” que Margareth Thatcher começou a cair quando, em uma entrevista, aventou a possibilidade de privatizar o NHS (National Health System).

Os Estados Unidos resistem a uma saúde pública igualitária e ainda apresenta o vexame de ter 27,5 milhões de norte-americanos sem nenhuma cobertura de saúde. Mesmo o Japão tem um sistema gratuito de dificílimo acesso. Apenas os países nórdicos – não sem luta da população no início do século XX – construiu sistema viáveis e perenes, embora hoje sob ameaça do capitalismo de desconstrução. Não à toa, a média de expectativa de vida na OCDE, os países mais ricos, está estagnada.

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No Brasil, o sistema perdeu no ano passado 9 bilhões de reais de orçamento. Agora, perde-se tempo em discutir do bolso de quem – do Executivo ou das emendas parlamentares – sairão 5 bilhões de reais. Em pleno período de emergência. Quando houver a decisão, a pandemia já demandará mais 50 bilhões talvez para ser controlada. Sem falar no corte de 27,4% no orçamento das pesquisas em saúde, parte fundamental do sistema. Os idosos serão as vítimas dessa negligência fiscal. Mas não só eles.

Toda a economia pagará um preço alto. Nem todos os idosos que serão contaminados, evidentemente, morrerão. Mas um risco grande, humano e econômico, é a consequência de uma contaminação naqueles que já são pacientes. Ou seja, já apresentam doenças ou, pior, um grau de dependência nível 2. Podem passar rapidamente para um nível 3. Nas famílias onde ocorrer essa mudança, alguém precisará deixar o emprego para cuidar em tempo integral ou pagar o custo alto de cuidados de longa duração. No primeiro caso, perderemos força de trabalho, ampliando as consequências econômicas negativas da dinâmica demográfica. No segundo, encareceremos, por exemplo, o custo do trabalho de talentos que devem ser retidos pelas empresas. É caro conciliar carreira e cuidados, como bem sabem as mulheres.

Um sistema de saúde compatível com seu tempo poderia mitigar muitos desses efeitos. No entanto, é difícil convencer certas mentes que saúde é investimento. Como o Brasil envelhece rápido, temos pouco tempo. Uma das principais tarefas, no meu entendimento, é a conscientização social sobre a importância do SUS. A sociedade não irá defendê-lo se o desconhece. Suas origens, seus defensores e seus detratores. Mesmo os usuários do SUS não sabem como ele surgiu e quais adaptações são necessárias. Como torná-lo ainda mais eficiente e como defender seu custeio? Essa é uma grande tarefa para universidades e comunicadores logo depois da Covid-19. Por ora, é contar com o que temos.


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Jorge Félix

Jornalista especializado em envelhecimento populacional, pesquisador (CNPq), mestre em Economia e doutor em Ciências Sociais (PUC-SP). Autor do livro "Viver Muito". É Professor de Epidemiologia do Envelhecimento no curso de Gerontologia da USP/Escola de Artes, Ciências e Humanidades. Escreve sobre Economia da Longevidade. Email: [email protected] Twitter/@jorgemarfelix - www.economiadalongevidade.com.br. Facebook Viver Muito

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Jorge Félix

Jornalista especializado em envelhecimento populacional, pesquisador (CNPq), mestre em Economia e doutor em Ciências Sociais (PUC-SP). Autor do livro "Viver Muito". É Professor de Epidemiologia do Envelhecimento no curso de Gerontologia da USP/Escola de Artes, Ciências e Humanidades. Escreve sobre Economia da Longevidade. Email: [email protected] Twitter/@jorgemarfelix - www.economiadalongevidade.com.br. Facebook Viver Muito

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