A valsa do bolo de mel

A valsa do bolo de mel

Um copo todinho melado para acalantar as amarguras deste viver pesado e deste envelhecer nem sempre confortável retratados nos tantos velhos que nos cercam com suas velhices amargas e esquecidas. Estamos doentes e assim como os velhos, precisamos de doçura em forma de dignidade, mas onde está o mel?


Não adianta me olhar com piedade, este é o último bolo que faço com vocês duas, afinal meus muitos anos de uso desgastaram minha estrutura e não consigo mais me manter firme no suporte para ajudá-las nas atividades culinárias que tanto gostam de fazer juntas; mas por favor não cabe aqui ter pena de mim que tive no meu tempo de uso a oportunidade de fazer verdadeiras delícias pelas mãos da cozinheira Zenilda e ao lado de vocês que de um tempo para cá resolveram fazer da culinária uma gostosa maneira de compartilhar a alegria de uma fazer parte da vida da outra. Sabemos que ao casar, também casamos com a família e eu aqui, da minha cozinha sei que esta é a mais pura verdade já que pude observar do alto da minha prateleira os almoços, lanches e jantares que ao longo desses quase trinta anos de casamento com a família, enlaçada pelo matrimônio, vocês compartilham a vida entre um sabor e outro. Nesta casa, tudo acontece na cozinha e a sala de jantar, que sempre tem uma certa formalidade na sua composição, foi desfeita na última reforma do apartamento, afinal bom é cozer os afetos no lugar eleito como o coração deste lar.

Nunca fui uma batedeira glamorosa, mas minha simplicidade sempre deu conta das receitas escolhidas até chegar o tal bolo de mel de Rosh Hashaná feito pelos judeus para celebrar o ano que se inicia. Que seja doce como o mel tão usado nas receitas desta festa que me levou a pensar na peculiaridade da vida dela que me acolheu como sua, e que parece ser mais judia do que a própria família do marido. Vejo nos seus olhos o quanto ela valoriza as tradições e o quanto preza vivenciá-las. Isso caiu como uma luva para quem diz ser a favor da união dos povos e que por isso se casou com um judeu, sem falar que faz quase trinta anos que ela festeja tudo em dobro e que ao mesmo tempo que se delicia com os ovos de chocolate da Páscoa católica, saboreia a delícia do bolo de castanha com a farinha de Matza na Pessach, mas este bolo fica para uma outra história.

O Bolo de mel, aqui em questão, é sem dúvida alguma o bolo mais complexo feito por mim que tive as mãos da experiente cozinheira Lenina como meu eixo de sustentação para um bater ora lento e ora frenético. Ao lado delas eu parecia rodopiar uma valsa de Strauss enquanto, pouco a pouco os ingredientes eram acrescentados mas sem esquecer que a aventura começa ao separar as gemas das claras de 5 grandes ovos, afinal as claras batidas com uma pitada de sal, como num passe de mágica se transformam em neves iguaizinhas àquelas vividas por Lenina no rígido inverno da Rússia e por ela, que em Ithaca, iniciou sua vida de casada com a neve que fazia o Campus de Cornell parecer um presépio tamanha exuberância. Uma beleza que comprova o poder da transformação da vida e dos ingredientes que compõe o viver e o envelhecer. Se pudesse falar, diria a vocês duas para rodopiar com fervor lembrando que a clara em neve jamais será resultado da inércia que nos aflige de tempos em tempos. Surge então uma beleza cuja firmeza se sustenta até de ponta cabeça.

Reserve, disse ela no auge da sua sabedoria culinária e hereditária que veio, da sua mãe para ela, e que agora se esforça a formar uma nova aspirante à Lenina cujos intensos desejos de aprender as receitas a fazem esquecer o tanto que ainda tem que caminhar para se tornar uma cozinheira que faça jus a tantas qualidades, culinárias e hereditárias. O burburinho entre elas não parava. A maçã verde já está ralada? Separe a pinga, o mel, as nozes, uvas passas, cacau, geleia, açúcar, bicarbonato, o fermento o óleo. Não esqueça de deixar um café forte já pronto. Leia a receita para ver se não esquecemos de nada, dizia Lenina.

E vamos lá usar o que foi deixado de lado na tal mágica das neves: As gemas, afinal nada nesta vida deve ser desperdiçado, muito menos os sentimentos.

Vamos bater as 5 gemas com um copo de açúcar e gradativamente acrescentamos um copo não tão cheio de óleo. Você já fez maionese em casa? Perguntava nossa chef enquanto já passava outros novos ensinamentos. Esquecia a quentura do meu motor e chegava a exalar uma alegria em forma de um perfume qualquer. Cheiros se espalhavam pela cozinha enquanto eu continuava a valsar com o pão duro guiando a tal dança sempre para o mesmo lado, como nos ensinou Vovó Tela, mãe da Lenina e mentora dos encontros em algum canto da eternidade. Víamos o tal creme ser formado ali bem amarelinho como numa menção aos girassóis de um tal holandês cujo talento estava em outra arte que não na culinária e que procurou adoçar sua vida doentia com tintas.

Nós seguimos na tentativa de adoçar nossa também vida, de tempos também doentios. Haja mel. Um copo todinho melado para acalantar as amarguras deste viver pesado e deste envelhecer nem sempre confortável retratados nos tantos velhos que nos cercam com suas velhices amargas e esquecidas. Estamos doentes e assim como os velhos, precisamos de doçura em forma de dignidade, mas onde está o mel? Onde está a dignidade? Coloque o mel aos poucos, dizia ela. Pausa para uma foto, era preciso compartilhar o doce do momento. Sou uma batedeira velha e também quero fazer parte do registro deste instante juntamente com aquelas mãos de 86 anos que me seguram com propriedade. Sorrimos, elas duas e eu em um leve arranque do motor. Eu valsava e valsava e valsava.

Dois copos de farinha de trigo e uma xícara de cacau para sujar os rostos e levantar poeira. É da velhice que falamos?  É dos velhos que se calam para não atrapalhar a vida de quem já tanto o atrapalhou? Não há afeto sem interferências e aquele pó todo, ora branco da farinha, ora marrom do cacau parecia querer nos dizer algo. Tudo misturado. Chega a hora da maçã verde ralada em ralador grosso, pois a doçura em excesso também pede um azedo como contraponto caso contrário tudo parece nausear. É da vida que falamos agora?

Azeda aqui, adoça ali e é hora de acrescentar uma colher de sopa de geleia, uva passa e nozes a gosto. Tudo na mesma valsa que pede um pouco de embriaguez na sua colher de sopa de pinga. Ponha mais. Isso dá um gosto especial ao bolo, dizia Lenina.

Olhava para vocês duas e percebia a cumplicidade do momento onde o afeto conduzia a culinária. Hora do café forte e seus ¾ de xícara que vieram para comprovar a falta de tato com a matemática para ela que tanto se esforça para aprender a ser algo próximo a vó Tela, Lenina, Zenilda e outras tantas talentosas cozinheiras. Café que nos desperta para a realidade do viver que clama por doçura e faz crescer nossos sonhos que precisam ser fermentados sempre, enquanto acrescentavam à receita uma colher de sopa de fermento com uma colher de café de bicarbonato.

Unte a forma com óleo e salpique farinha de rosca, dizia ela. Leve ao forno e fique de olho para não queimar.

Chegou a hora de me soltarem em um canto da mesa. Saibam que foi um prazer cozinhar com vocês. Estou velha e cheia de vontade de uma vida mais amena. Quem sabe a Edna lá de Campos do Jordão não me queira por lá. Adoraria passar os restos dos meus tempos no aconchego daquela cidade. Quanto ao coração? Faz tempo que tenho pensado na eternidade do viver como algo absolutamente presente, portanto pode vir outra batedeira, mais nova e potente. No coração de vocês duas serei eu quem estará na lembrança do primeiro bolo de mel que fizeram juntas.

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Novamente, do alto da prateleira eu observava o momento e desejava um ano doce assim como almejava doçura para as velhices amargas, para os relacionamentos ácidos e para os afetos cítricos.

O cheiro inundava a casa e o bolo crescido parecia apetitoso.

Em volta da mesa da cozinha a família deixava as amarguras de cada dia para adocicar o viver compartilhado entre uma fatia e outra de bolo.

E não é que ficou bom? Com o olhar as duas compactuavam os afetos e a doçura de ter a vida de uma, fazendo parte da vida da outra.

E que seja doce, para Lenina, para ela e para os velhos de hoje e os de amanhã.

Shana Tovah Umetuka


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Cristiane T. Pomeranz

Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemoriasemcasa.com.br E-mail: [email protected].

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