E-book repensa a relação entre a universidade e o envelhecimento populacional
Ao receber o convite para prefaciar esta obra, sobre universidade e envelhecimento, lembrei-me das diversas batalhas acadêmicas que um grupo de pesquisadores teve na PUC-SP ao implantar o hoje já extinto mestrado em Gerontologia1. A questão que se colocava na ocasião, meados da década de 90, era se o envelhecimento seria um problema de pesquisa. Várias discussões foram feitas, muitas delas bizarras, porque na academia a situação não era diferente do que ocorria na sociedade como um todo, embora ninguém quisesse morrer jovem, ser velho era sinônimo de fraqueza, feiura, e, principalmente, improdutividade.
Se hoje ser velho ainda traz um conjunto imenso de conotações pejorativas nas universidades, imaginem na época? Para que estudar um tema que não tinha status? Dito em outras palavras, era perda de tempo (e dinheiro também) estudar um fenômeno terminal. Pior que até hoje tem colegas que pensam assim…
As universidades pioneiras a encarar o processo de envelhecimento e a velhice como tema acadêmico foram a Unicamp e a PUC-SP, ambas localizadas no Estado de São Paulo. De lá para cá outras universidades, principalmente públicas, introduziram alguns cursos, mas a bem da verdade, ainda são muito poucas ante o fenômeno do envelhecimento populacional neste século.
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E muitas delas, infelizmente, produzem conhecimento centrado na série de eventos que impacta o organismo, nas suas doenças, perpetrando a associação desta etapa da existência da vida a enfermidades.
Daí a grata surpresa em encontrar uma obra acadêmica, comprometida socialmente, e que tenta atribuir novos significados às vivências individuais e coletivas, vivências que ocorrem em um tempo social, e em um lugar. Um olhar para o sujeito que habita um organismo territorializado.
Repensar a relação entre a universidade e o envelhecimento populacional, exige a urgência de se olhar o humano na sua existencialidade como sendo seu tempo vivido, o tempo Kairós, como já assinalava o professor Joel Martins (1920-1993)2. Em sua palestra proferida em 1991, sobre o ser e o tempo, dizia ele que o “tempo é o sentido da vida”. E que o “sujeito não pode ser uma série de eventos psíquicos, isto é – ser criança, ser adolescente, ser adulto, ser velho – como um conjunto segmentado de eventos” (p. 12).
Como a universidade pode dar conta desse homem que vai além de uma sequência de anos e acontecimentos, que também é kairós? Como o tempo do velho pode ser reinventado continuamente? Perguntas que ficam no ar à espera de outros pesquisadores que, curiosos, queiram se debruçar nesses territórios muitas vezes inóspitos.
Hoje, podemos afirmar com certeza que da década de 90 para cá, já existe um acervo acadêmico sobre o envelhecimento e a velhice brasileira, demonstrando que o tema está vencendo as resistências e os mitos envolvidos tanto no envelhecimento quanto na velhice em si.
Iniciativas como esta são mais que necessárias, afinal, o futuro é velho e navegar por esse território deve ser preciso, como já dizia meu conterrâneo Fernando Pessoa. O grupo Espaços Deliberativos e Governança Pública (Gegop) e a Frente Nacional dos Conselhos de Direitos da Pessoa Idosa (FFC) acertaram em organizar material recente produzido pelas universidades brasileiras que vão auxiliar a navegação por esse mar tão “agitado e ainda estranho para muitos”, como o envelhecimento ainda é encarado por nós.
Num país onde a velhice vem se tornando cada vez mais feminina e mais avançada, encontrar subsídios para fortalecer a governança pública e fomentar boas reflexões na sociedade que asseguram a construção de uma cultura onde o longeviver seja digno e desejado, é tudo o que queremos, nós, estudiosos do envelhecimento que nos tornamos objetos de nosso próprio estudo.
Após mais de 20 anos atuando na disseminação qualificada sobre nosso longeviver, é muito bom testemunhar o interesse da universidade na análise, na pesquisa e na elaboração de projetos de ação que tornem possível as pessoas viverem longamente com dignidade. Também é muito bom ver finalmente a universidade cumprindo seu papel – o de contribuir para o desenvolvimento social -, a começar por potencializar a popularização do conhecimento que ali é produzido.
Que outras iniciativas como esta, que promovam a difusão e divulgação do conhecimento a respeito do envelhecimento e da velhice em si – na perspectiva do ser que envelhece e da governança pública -, possam se replicar em todas as universidades do país afora, subsidiando, incentivando e fomentando políticas públicas que garantam um melhor envelhecer e longeviver!
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Notas
(1) O mestrado tinha como área de concentração a Gerontologia Social e acabou sendo extinto em 2019. O grupo interdisciplinar de docentes cansou de lutar contra a instituição e o sistema de avaliação existente no país e preferiu cada um levar o envelhecimento para dentro da área disciplinar a qual fazia parte.
(2) A palestra do professor Joel Martins foi transcrita e publicada na Revista Kairós-Geronto- logia, Ano 1-n. 1, 1998, pp. 11-24, sob o título: Não somos cronos, somos Kairós”
Serviço
A universidade e o envelhecimento populacional: diálogos e experiências em construção no Brasil
Simone Martins … [et al.] organizadoras
Viçosa, MG: UFV, IPPDS, 2023. (177 p.)
Foto destaque de Keira Burton/pexels