A “Desobediência” e a questão do livre arbítrio

A “Desobediência” e a questão do livre arbítrio

 

O debate do filme “Desobediência” aconteceu no Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca, no dia 26/6/2018, evento que faz parte do projeto Itaú Viver Mais Cinema em parceria com o Portal do envelhecimento.

 

“Desobediência” estreou no Festival Internacional de Cinema de Toronto de 2017. Foi baseado no romance de estreia de Naomi Alderman (2016). A tradução holandesa foi concluída em 2007 sob o título de “Desobedience”. Trata-se do primeiro filme em inglês do diretor chileno Sebastián Lelio, tendo duas destacadas atrizes de Hollywwod, Rachel McAdams e Rachel Weisz como protagonistas principais.

Em entrevista para uma tv chilena, Lelio explicou que a motivação para fazer o filme foi pelo interesse em contar histórias de mulheres, e poder entender o que não conhece. Para ele, “Desobediência” é uma história humana, que se passa numa comunidade judaica ortodoxa, ao norte de Londres, mas que poderia ser contada sob outro contexto, em outro espaço social, de tradição, como uma missão de Deus. Aponta também que não é um filme que satanize, que são apenas luzes e sombras de uma comunidade e das personagens principais, e que o livro em que se baseia o filme é também extraordinário, pois a autora, Naomi Alderman, cresceu nessa comunidade, e também a deixou para viver em Nova York, um pouco como Ronit. No livro, Alderman desvela o judaísmo ortodoxo sob a perspectiva feminina, e nos dá uma visão do mundo judeu ortodoxo, opressivo, principalmente das mulheres.

Para realizar o filme, a equipe investigou as relações lésbicas com pessoas próximas, na literatura sobre essa questão, e se integraram na comunidade judia ortodoxa de Londres e Los Angeles, e no caso de McAdams (Esti) e Nivola (Dovid), aprender a falar hebreu.

No filme, a personagem Ronit (Rachel Weisz), fotógrafa, que vive em Nova York, regressa à Londres, sua terra natal, pela morte de seu pai, um rabino respeitável, de uma comunidade ortodoxa de Golden Green. No seu retorno encontra Esti (Rachel McAdams), sua grande amiga e paixão de infância, casada com seu primo Dovid (Alessandro Nivola), o qual sabia sobre o relacionamento entre as duas mulheres no passado, uma das razões para que o pai de Ronit a expulsasse da comunidade e a deserdasse. Elas tentam reatar seu amor proibido, mas os obstáculos são as convenções da comunidade, os valores religiosos e a culpa decorrente deles.

O debate

O debate no grupo após o filme se iniciou em cima da fala do rabino (Anton Lesser) na sinagoga, antes de cair morto. Ele pregava que Deus criou três categorias de seres vivos. Os anjos, os animais, e o homem e a mulher. Os anjos vivem segundo a Palavra de Deus, os animais são regidos pelos instintos, e o homem e a mulher possuem livre arbítrio. De todas as criaturas da Criação, são as que podem escolher (livre arbítrio).

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Diante disso, uma das mulheres presentes no cinema protestou dizendo que o rabino “mentiu”, e que não era verdade o que pregava, já que elas (as personagens) não puderam escolher e foram punidas. Essa fala foi contestada por outra senhora, lembrando um filme que havia assistido, onde uma mulher rabina, dizia que se no Torá não dizia nada sobre relações entre mulheres, então não era pecado. Nesse momento ouve algumas contestações, o que me permitiu fazer algumas interferências e observações sobre essa questão, apontando que, segundo fontes consultadas, o lesbianismo realmente não é mencionado no Torá, mas também não é aceito pelo judaísmo ortodoxo, pois o Torá oral o proíbe. Na sociedade judaica laicista, que faz a maior parte da população judaica do mundo, e de Israel, a homossexualidade é bem aceita, em geral, e homossexuais assumidos fazem uma parte integral na sociedade. O judaísmo reformista permite a homossexualidade e atua em casamentos homossexuais.

Um senhor da plateia ao se apresentar como judeu, mas não religioso, falou que seu filho morava em Israel e se tornara ortodoxo, tendo sete filhos. Essa fala deu oportunidade para discorrer sobre questões, como maternidade, filhos, vestimentas, papel da mulher, poder, que permeiam o meio judeu ortodoxo, e que no filme apareceram em várias cenas, nas quais me apoiei em Elena Judensnaider Knijnic, socióloga e coautora do livro “20 centavos”.

Elena citou em seu blog, que cresceu num ambiente judaico praticante não ortodoxo, e compartilhou espaços sagrados com famílias mais religiosas, e viu “A avó usar peruca, porque judia religiosa não pode mostrar seu cabelo natural para qualquer homem que não seja da família. Ouviu de professoras de escolas judaicas que – as garotas não precisavam aprender tanto, afinal, logo casariam e teriam filhos e suas vidas se resumiriam a isso. Foi nas sinagogas, em que as mulheres se sentavam de um lado e os homens de outro. Em algumas, os homens ficaram no andar inferior, de frente à Torá (livro sagrado judaico), enquanto às mulheres ficavam reservadas poucas cadeiras, no andar superior, de onde mal se conseguia assistir às rezas”.

Elena conta ainda que “Uma vez, ainda criança, reclamei para minha tia que tudo aquilo não era justo. Ela me respondeu firme, sem perceber a grande lição que estava me dando sobre relativismo cultural: “para elas, isso é felicidade“. A verdade, é que foi ótimo ter ouvido essa frase, pois ela me deu muito mais clareza para entender a necessidade de lutas transversais, ou seja: não adianta lutar contra o sionismo sem lutar contra o machismo; não adianta lutar contra o machismo sem lutar contra o racismo e por aí vai. As lutas se complementam. Percebi que por ser mulher eu tinha ainda menos direito de me posicionar contra o sionismo e suas políticas. Isso se deve, além de ao machismo estrutural do qual os judeus não escapam, ao machismo particular reproduzido pelo judaísmo – principalmente o ortodoxo”.

Finalizando o pensamento de Elena, trouxe para o debate a fala que achei muito pertinente, e que pode refletir o que o filme traz, “Minha intenção é apenas a de demonstrar que os crimes à humanidade praticados por grupos religiosos não devem ser analisados na chave cultural (ou, ainda, moral), e sim na chave do poder. Porque eles existem em todos os grupos, mas o desenvolvimento ou a divulgação dos atos é proporcional ao seu poder, seja ele econômico, social, político ou militar”.

Discorremos sobre a questão do livre arbítrio, da capacidade de escolher, e arcar com as consequências, sem se culpar e sem culpar o outro pelas nossas escolhas. Quanto às crenças, lembramos a necessidade de entender as diferenças, que cada pessoa se comporta à sua maneira, uma vez que todos têm direito de construir seus pensamentos e convicções de acordo com a forma que interpretam o mundo. As crenças são construídas a partir das interpretações baseadas na experiência de vida de cada indivíduo. Para que a convivência em sociedade seja possível, é fundamental que haja respeito às diferenças.

Fechamos o debate com a fala da atriz e produtora do filme, Rachel Weisz: “Se você está sempre fugindo de algo, não é realmente livre. Este filme trata de entender a liberdade, e às vezes a desobediência é importante, fundamental, mas, quando é demasiada, como no caso de Ronit, não estou tão segura de que seja verdadeira”.

Para as questões que o filme “Desobediência” explora, formulei algumas perguntas para a plateia levar e refletir em casa:

  • O que é certo?
  • O quanto devemos nos reprimir e se anular por conta da fé?
  • A partir de qual momento deixamos de sermos nós mesmos, para ser o que esperam de nós?
  • “Que você possa viver uma vida longa!”, vimos no filme uns dizerem para os outros, mas o que é uma boa vida longa?

Fotos da plateia: Rodrigo Gueiros

Regina Pilar G. Arantes

Pedagoga; Mestre em Gerontologia; Especialista em Orientação Profissional; Coordenadora do ECAP/SP; Coordena Oficina de Orientação e Revisão de Projetos de Vida; Coautora do livro Nós Mulheres, volume 3; Pesquisadora e responsável por Relacionamentos do Portal do Envelhecimento; Pesquisadora do grupo de Pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação (LEC) da PUC-SP; palestrante. É colaboradora do Portal desde sua fundação, em 2004, contribuindo com artigos, e na função que exerce até hoje, a dos Relacionamentos. Sua atuação junto aos leitores é gratificante, pois em diversas situações acredita tê-los auxiliado em suas necessidades, não só direcionando suas questões a áreas específicas de atuação dos colaboradores do Portal, como indicando caminhos, enviando material, dando-lhes atenção e palavras de apoio. Email: [email protected]

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Pedagoga; Mestre em Gerontologia; Especialista em Orientação Profissional; Coordenadora do ECAP/SP; Coordena Oficina de Orientação e Revisão de Projetos de Vida; Coautora do livro Nós Mulheres, volume 3; Pesquisadora e responsável por Relacionamentos do Portal do Envelhecimento; Pesquisadora do grupo de Pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação (LEC) da PUC-SP; palestrante. É colaboradora do Portal desde sua fundação, em 2004, contribuindo com artigos, e na função que exerce até hoje, a dos Relacionamentos. Sua atuação junto aos leitores é gratificante, pois em diversas situações acredita tê-los auxiliado em suas necessidades, não só direcionando suas questões a áreas específicas de atuação dos colaboradores do Portal, como indicando caminhos, enviando material, dando-lhes atenção e palavras de apoio. Email: [email protected]

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