Vista boa

Vista boa

Stok Brok ficou dias falando no tal terreno e só depois viemos a saber que se tratava de um “lote” no cemitério, dizia que o ponto era bom, na parte alta do campo-santo, com vista boa.

Gislene Silva (*)


No dia 27 fevereiro meu querido pai faria 95 anos. Viveu 83. Quando ele tinha 72 e eu trabalhava como repórter na Globo Rural, escrevi uma crônica na revista em sua homenagem num agosto, pelo dia dos pais. Com enorme saudade dele e de suas inúmeras boas histórias, reproduzo o tal texto aqui (publicado na GRU em 1998).


Quando naquela tarde, não muito distante, meu pai entrou cozinha adentro dizendo que trazia nas mãos a escritura de um terreno que acabara de comprar e que iria construir um prédio de dois andares, minha mãe se pôs de prontidão. Toda vez que o pai se metia com compras e obras rendia briga na certa. Maquinista aposentado da Rede Ferroviária Federal, na minúscula cidade de São Geraldo, na Zona da Mata de Minas, João Francisco da Silva ainda hoje é conhecido pelo apelido de Stok Brok. Ninguém nunca explicou este apelido, mas imagina-se que tem a ver com ‘stop: broked’, um aviso escrito num cavalete do barracão da estação da antiga ferrovia inglesa.

Primeiro, quando já tinha seis dos onze filhos e a família morava de aluguel, o pai queria comprar um carro. A mãe bateu pé. Não tinha casa própria ainda. Ele teve de desfazer o negócio. Porém, meio tinhoso, aceitou comprar não uma casa pronta, mas um lote. Escolheu o lugar e nele construiu a casa do jeito que quis. Nos meses de construção, venceu a contenda com os pedreiros e fez um banheiro maior que qualquer quarto da casa, de uns 20 metros quadrados, onde até hoje guarda sua bicicleta Harley, comprada em 1948 e um armário com suas ferramentas mais caras.

Casa erguida, anos depois, quando já era nove o número de filhos e o salário já não dava para quitar as cadernetas do armazém e do açougue no final do mês, Stok Brok resolveu comprar uma sanfona para que qualquer um dos filhos, e havia de ter um, aprendesse a tocar o instrumento para ele ouvir.

Outra vez a mãe discordou, principalmente porque o dinheiro, ganho pelo meu irmão mais velho tocando trompete em quatro longas noites de carnaval no clube, foi dado ao pai especialmente para acertar a dívida acumulada das cadernetas. Só que desta vez o negócio já estava fechado. Stok Brok trouxe a sanfona, mas pagou por ela um preço mais alto do que pensava. A mãe proibiu filhos e filhas de sequer abrir a caixa do instrumento.

Que eu me lembre, o único dia em que lá em casa ouvimos uma música sair daquele acordeão foi quando, na frente de todos nós reunidos em torno de um primo e sua mulher, vindos de São Paulo para uma visita, meu pai com a maior naturalidade o pediu para tocar. O primo improvisou qualquer coisa e acho que nunca soube do enorme encantamento que em nós exerceu aquele arremedo de execução musical. Com exceção desta tarde, durante mais de uma década, a sanfona ficou assim, muda.

Um dia, cansado de receber ofertas, Stok Brok vendeu o instrumento. Mas, já com dez filhos, partiu para nova empreitada. Com a bolada que ganhou com um processo contra a Rede Ferroviária, corrigindo distorções em sua aposentadoria, ele comprou um enorme torno mecânico alemão. Foi preciso uns quinze homens para descer o torno e levar até debaixo da coberta no quintal. Nele, Stok Brok nunca torneou uma peça. Foi só por gosto. Até hoje, depois de mais de vinte anos, o torno ainda está lá, imponente e intocável.

Depois disso veio, enfim, a compra do carro, que Stok Brok, maquinista de Maria Fumaça e locomotiva a diesel, nunca dirigiu. Seu prazer está em tê-lo e consertá-lo. É para ocupar o vazio do tempo deixado pela aposentadoria e também para manter em atividade mãos que sempre consertaram despertadores, enceradeiras, chuveiros, descargas, liquidificadores e máquinas de lavar de muitas casas lá em São Geraldo.

Por tudo isso, falar em escritura de um terreno deixou nós todos apreensivos. Dos agora onze filhos, só os quatro mais novos ainda não tinham saído de casa para fazer faculdade. Stok Brok ficou dias falando no tal terreno e só depois viemos a saber que se tratava de um “lote” no cemitério. Era para construir duas sepulturas, os tais dois andares. Orgulhoso, ele dizia que o ponto era bom, na parte alta do campo-santo. Escolheu, então, o melhor pedreiro e mandou erguer o jazigo. Desta vez, a Dona Elza deu sua aprovação.

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Pouco tempo depois, quando o pai estava ausente da cidade por uns dias, o prefeito precisou enterrar o sogro e, como chovia muito no dia e não havia como preparar a sepultura, achou que, como autoridade maior do município, podia ocupar a sepultura construída pelo pai sem sua autorização. Stok Brok processou o prefeito. Ganhou um novo jazigo, mas não era essa sua causa.

Não ia aceitar uma sepultura feita por qualquer pedreiro e ainda mais numa localização ruim. “Quero meu túmulo num ponto em que dê para eu ver tudo, não vou querer ficar na parte baixa do cemitério”, exigiu. Depois de idas e voltas da advogada chegou-se ao novo acordo. Stok Brok escolheu o terreno, chamou o seu pedreiro e, de novo, ergueram a sepultura. Ficou bastante satisfeito, pois o ponto era muito melhor localizado que o anterior.

Passaram-se apenas dois anos e, num feriado de Sexta-feira da Paixão, muitos de nós, os filhos, enchíamos a casa. Na hora da janta, o pai chega da rua e comunica o falecimento de um vizinho nosso. Uma tragédia: a então viúva perdera, num período de seis anos, dois filhos jovens e a sogra. Já era mais de meia-noite quando uma voz embargada chamou ‘Sô João’ lá fora. Debruçado na janela, o pai ouvia, impassível, nosso ex-professor de matemática, irmão do falecido: a família, com tantas mortes recentes, não tinha jazigo disponível e pedia misericordiamente para ocupar a sepultura do pai nesse caso de emergência.

Stok Brok pensava como iria encontrar um outro ponto tão bom como aquele. Ficou mudo. A mãe dava-lhe cotoveladas para que dissesse sim. Nada, não saía palavra de sua boca. A mãe, então, respondeu: “Claro!” e ainda expressou a compaixão de todos nós. Durante vários dias, Stok Brok não escondia seu desconsolo. Semanas depois, voltou ao cemitério. Junto com seu pedreiro e o irmão do falecido, demarcou mais uma vez o lugar de sua nova sepultura. Fica na parte alta, mas a visão já não é tão boa. Tentei consolá-lo. Não devia ficar triste… Argumentei que cada vez que ele empresta o túmulo para alguém, mesmo contra sua vontade, ganha do Todo Poderoso mais alguns anos de vida.

(*) Gislene Silva – Jornalista, Doutora em Antropologia na PUC-SP. Docente na Universidade Federal de Santa Catarina. Texto publicado no seu face. Reprodução autorizada.

Foto de Anna-Louise/Pexels


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