Nada deveria amanhecer assim. O dia, principalmente. Não há necessidade, ainda não terminou o ontem e, ainda, “esqueceram” algumas crianças naquele dia. Por isso, não poderia começar o dia seguinte. A maioria das pessoas ainda não saiu de suas casas. As ruas estão na solidão, quase silêncio. O vento quente sopra leve, não encontra obstáculos.
Alcides Freire Melo *
Encontra lixo; impressionante este lixo – não tem cheiro de nada, nem de lixo, nem de bicho, nada.
A cidade do João resolveu amanhecer e continuar com todas as suas luzes acesas; os postes das ruas, praças e avenidas. Todos estavam iluminados, com milhares de lâmpadas amareladas de tungstênio. Mesmo ao meio-dia, a cidade ainda fala pouco. São sete horas de um dia com sol, muito sol sobre a palidez deste João que sorri solitário, por becos escuros. Estranho os semáforos estarem apagados – nenhuma luz verde. Talvez ainda não tenha terminado a noite e o dia resolveu atrapalhar toda a escuridão que esconde as caras. Todas as fumaças, alcaloides e álcoois. Não as casas de muros altos que protegem outros Joões.
Nada deveria amanhecer assim. O dia, principalmente. Não há necessidade, ainda não terminou o ontem e, ainda, “esqueceram” algumas crianças naquele dia. Por isso, não poderia começar o dia seguinte. A maioria das pessoas ainda não saiu de suas casas. As ruas estão na solidão, quase silêncio. O vento quente sopra leve, não encontra obstáculos. Encontra lixo; impressionante este lixo – não tem cheiro de nada, nem de lixo, nem de bicho, nada. Não poderia ser lixo se é sustento, cama para João, José, Maria, Lucas… também abriga e protege quem nunca teve nenhum nome ou foi apagado dele, tomado, talvez.
Não deveriam ter cheiro e cor todas as coisas que ficam e são ruas! Antes, havia formas, algumas geométricas, outras, poéticas. As pessoas sorriam, beijavam-se, juravam-se! Talvez um dia todas elas foram perfumadas. Nesta rua, onde o sol aparece a meia noite, alguns moradores curvam-se, andam sobre quatro patas, aprendem a ganir quando dói, gemer quando aparece a fome, sorrir quando encontra o delírio. Sorrir para o chão, ao céu, ora. Esqueceram-se de levantar, desaprenderam a viver, esqueceram. E, agora, não há quem ensine, ajude a tirar as mãos do chão, beijar, andar de pé. Chorar.
Esta rua é nova. Certamente foi aberta esta semana, pois não tem nome, não fizeram ainda a pavimentação. E deixaram, por “descuido”, “esquecimento”, um pequeno riacho correndo próximo às calçadas. Tortuoso, vai para o meio, enlameia os pés das crianças, a barriga dos cachorros. A água deste riacho é escura, preta. Também, como aquela rua, não tem cheiro nenhum. Deve ser boa de beber – é boa, é agua clara, sem nenhum sabor. Talvez este sol, que apareceu à meia noite, tenha provocado tamanha sede. Nada está mais na memória e em nenhum do que restou dos cinco sentidos do João.
João, 40 anos, magro, olhos divididos ao meio pelas pálpebras, cheira a perfumes fortes, adocicados de várias mulheres. Somaram-se ao suor e impregnam a única roupa; roupa sem contradição para lembrar quanto tempo faz que saiu de um guarda-roupas. Agora é uma época sem referência. Não há como saber em data, quando foi que deixou último abraço, a última família. O tempo não aparece no rosto, nas mãos, sapatos, cabelos e barba. Em algumas histórias rememoradas, talvez. Nas lágrimas, ao encontrar e abraçar um amigo numa esquina sem ruas.
A vida perdeu a exatidão molecular. A esperança espiritual passou a ser contraditória. Perderam-se as referências, as datas saíram uma a uma do calendário. Os números vermelhos foram pintados de preto, os aniversários dos amigos não são mais comemorados, não se fazem mais festas. O Natal deixou de ser em dezembro. Certa vez era Natal numa praça; anjos cantavam e apareciam em janelas brancas decoradas com umas guirlandas, com laços de fitas vermelhas. Aquele foi o último dezembro com luzes, carrinhos de brinquedo, Papai Noel e Natal.
* Alcides Freire Melo – Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: [email protected].