Um mal silencioso

A doença de Alzheimer traz consigo uma série de perguntas. A sua origem permanece como um campo obscuro e não há exames que comprovem a doença com precisão. O que alguns neurologistas da Universidade de São Paulo (USP) pretendem é lançar um pouco de luz sobre a questão. Após dez anos de pesquisa, o grupo acredita ter identificado a primeira região cerebral a apresentar uma das lesões mais características da doença, os chamados emaranhados neurofibrilares, alterações nos prolongamentos que servem de linhas de comunicação dos neurônios. Ao contrário do que se pensava, o estudo aponta que a doença não começa no córtex, que é o centro do processamento de informações e armazenamento da memória, mas, sim, no tronco cerebral, numa área chamada núcleo dorsal da rafe. O tronco cerebral é uma importante estrutura do sistema nervoso, que controla funções involuntárias cruciais para a sobrevivência, como a respiração, pressão sanguínea e o sono. A idéia é defendida por brasileiros em parceria com alemães. Seus achados foram publicados na revista científica Neuropathology and Applied Neurobiology.

Roberta de Medeiros *


Lembrança forte na arte

No mundo das artes, principalmente no cinema, retratar a doença de Alzheimer com delicadeza, mas sem se tornar piegas, é o modo mais trabalhado. Entretanto, há casos nada delicados da vida real que alcançam os famosos, como Charlton Heston, ator hollywoodiano, Ronald Reagan, ex-presidente norte-americano, e a atriz Rita Hayworth. No Brasil, por exemplo, morreu aos 95 anos a empresária Stella Oliveira de Barros, fundadora da Stella Barros Turismo, também com a doença.

Kate Winslet e Judi Dench, grandes estrelas do cinema contemporâneo, também sofrem deste mal, mas apenas na ficção. Elas interpretam o caso real da escritora e filósofa, Iris Murdoch (1919-1999), referência na Inglaterra, no filme Iris. Na década de 1950, era professora na Universidade de Oxford e foi reconhecida por sua militância de esquerda e o espírito libertário. Faleceu em conseqüência de complicações decorrentes do mal de Alzheimer. O filme, que recebeu indicações ao Oscar, torna-se marcante ao mostrar como uma pessoa que vivia da memória e das palavras se viu incapacitada de lembrar e escrever.

Outro filme que traz às telas a doença é o argentino Filho da Noiva. Na história, Rafael é um quarentão dono de um restaurante, propriedade de sua família há muitos anos, que está passando por uma crise, devido à situação econômica na Argentina. Seu pai, um homem engraçado e de bem com a vida, tem um único arrependimento, o de não ter casado na igreja, por questão de crença, ou a falta dela. Então ele decide que já está na hora de fazer isso. Contudo, sua esposa sofre do mal de Alzheimer, e mal pode reconhecer sua família. Ele e seu filho devem apressar-se para realizar a cerimônia antes que a doença avance mais ainda.

A película sueca Uma canção para Martin, de Billie August, mostra o amor de um casal na terceira idade. Uma violinista de meia-idade começa a se envolver com um famoso maestro sueco, colocando a família em crise e seu casamento a perder. Eles enfrentam os obstáculos para ficarem juntos. Embora o maior obstáculo estivesse por vir. O maestro acaba dando os primeiros sinais da doença de Alzheimer. Do papel de mulher, a velha violinista assume o papel de mãe do seu grande amor. O filme mostra, delicadamente, que nem o amor é suficiente para vencer os sintomas do Alzheimer.

O filme Filho da Noiva mostra o drama de uma mulher que sofre de Alzheimer e que se lembra da família com dificuldade. Mesmo assim, ela e seu marido resolvem realizar um grande sonho: o de casar na igreja

A novidade

A descoberta deu-se após a realização de autópsia em cérebros de 118 pessoas, com idade média de 75 anos no momento da morte. Os pesquisadores identificaram a existência de lesões no núcleo dorsal da rafe em idosos que não apresentavam emaranhados em nenhuma outra parte do cérebro. O fato se repetiu com um grupo de 80 indivíduos que já tinham um emaranhado no córtex, ao menos.

“Verificamos se haviam alterações típicas do Alzheimer sem saber o resultado da pesquisa de alterações da doença no córtex. Com os resultados, cruzamos os dados e verificamos que 100% dos casos com alterações no córtex também tinham alteração na rafe. Enquanto isso, 22% dos casos que não tinham alteração no córtex apresentaram alteração na rafe”, explica uma das autoras do estudo, a patologista Lea Grinberg, coordenadora do Banco de Encéfalos Humanos da Faculdade de Medicina da USP e professora visitante do Laboratório de Morfologia Cerebral da Clínica de Psiquiatria da Universidade de Würzburg, na Alemanha.

De acordo com a pesquisadora, a tese de que a doença tem origem no tronco cerebral e se espalha para o córtex é importante na busca de terapias que ajudem a frear o desenvolvimento da doença em seu estágio inicial. “A partir de agora, o foco das pesquisas deverá ser o núcleo dorsal na rafe, e não o córtex. O objetivo principal é tentar parar ou diminuir, o mais cedo possível, a progressão da doença”, diz Lea.
As pesquisas pretendem descobrir formas de detectar com antecedência os sintomas de Alzheimer, por meio de exames de imagem, por exemplo. Algo similar com o que hoje é possível fazer com o AIDS

Com esse trabalho, os pesquisadores pretendem encontrar uma forma de diagnosticar precocemente a doença, assim como é feito atualmente com a AIDS. “O maior desafio está em desenvolver marcadores precoces que possam ser identificados no sangue, liquor ou por exames de imagem. Estamos usando a AIDS como base, já que o vírus HIV pode ser detectado anos antes da manifestação da doença. Esperamos conseguir o mesmo com a doença de Alzheimer”, afirma.

Os avanços, entretanto, dependem da confirmação da descoberta. “Qualquer descoberta pressupõe a necessidade de que outros grupos corroborem com o resultado. Esse é o primeiro passo. A partir daí, surgirão teorias, como, por exemplo, a de que o controle de serotonina do sistema nervoso central pode ser afetado logo no início. Poderíamos, assim, propor uma modulação desse neurotransmissor para tratar a doença”, explica o neurologista Ricardo Nitrini, professor do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do Centro de Referência em Estudos Cognitivos do Hospital das Clínicas.

“A tese de que a doença tem origem no tronco cerebral é importante na busca de frear o seu desenvolvimento

“Para onde essa descoberta vai nos levar, não sabemos precisar. Futuramente, quem sabe, será possível compreender o que essa descoberta trará de benefício, sabendo como os sintomas podem ser apresentados e que tipo de intervenção se fará necessária. Ou seja, agora temos mais um tijolo, mas ainda falta bastante para construir a casa que nos levará a um melhor conhecimento da doença”, acrescenta.

Convivendo com o paciente
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Até então, acreditava-se que os emaranhados que surgiam no tronco cerebral apareciam depois, e não antes, de regiões do córtex terem sido afetadas por essas alterações típicas da demência. “O desafio está em demonstrar quando esse núcleo é afetado cronologicamente no Alzheimer. Esse trabalho só pode ser feito por causa das características únicas do Banco de Encéfalos Humanos do Grupo de Estudos em Envelhecimento Cerebral, que é dos poucos remanescentes em casos controles no mundo. Por meio do serviço de verificação de mortes de São Paulo, conseguimos que cerca de 90% das famílias dos falecidos concordassem com a doação dos cérebros para a pesquisa. Por isso, estamos avançando no assunto”, comemora.

Os emaranhados

Para entender o que acontece com o cérebro de uma pessoa que sofre de Alzheimer, basta imaginar que qualquer órgão do corpo tem um padrão de tecido. Quando surge uma doença qualquer, pode haver alterações na estrutura desse tecido. No caso do Alzheimer, surgem os emaranhados, alças de filamentos que se entrelaçam formadas por fibras de proteína. Essas alças aparecem devido a uma alteração química na estrutura da proteína tau, responsável pela formação de micro túbulos que transportam nutrientes e informações dos axônios e dendritos dos neurônios. Modificada, a proteína altera a estrutura dos micro túbulos, levando à morte de neurônios. Mas essa não é a única alteração presente no Alzheimer. Há também o acúmulo anormal de uma proteína chamada beta-amiloide, o que resulta na formação de placas extracelulares.

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O Alzheimer é um desafio aos especialistas. A descoberta da área em que ele se desenvolve se configura como um tijolo na construção maior que deve ser feita para encontrar caminhos e soluções para a patologia

A verdade é que não há um consenso entre os especialistas sobre qual alteração na anatomia do neurônio é mais importante no surgimento da doença, se os emaranhados ou as placas de proteína. “Realmente, ainda estamos longe dessa definição. Pode até ser que outro elemento, oculto, cause a doença. Eu acho que a hipótese de que a doença se inicia em um ponto específico e se espalha para áreas vulneráveis, seguindo um esquema estereotipado, combina com o que vemos na patologia. Os emaranhados seguem esse esquema, as placas não. Além disso, o aumento dos emaranhados está correlacionado com a piora da cognição. Essa mesma associação não é observada com as placas. Mas, como disse, ainda não há nenhuma comprovação disso”, explica o neurologista Ricardo Nitrini, professor do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do Centro de Referência em Estudos Cognitivos do Hospital das Clínicas.

“A presença de emaranhados é uma marca da doença. Entretanto há controvérsias se, quando em locais limitados, os emaranhados representam as fases mais iniciais da doença ou alterações do envelhecimento normal. Cada vez mais se acredita que a primeira hipótese seja a correta. O motivo é que existem centenários sem emaranhados”, acrescenta o especialista.

Outras pesquisas

A partir do Banco de Encéfalos Humanos, outros pesquisadores estudam como os problemas vasculares, infarto e isquemias (alterações no fluxo sanguíneo do cérebro) interferem no surgimento do Alzheimer. Esses seriam fatores de risco no desenvolvimento da demência. Outro estudo verifica por que algumas pessoas têm alterações no tecido e clinicamente não apresentam nenhum sintoma da doença. O objetivo é verificar por que elas se tornam mais resistentes à doença e se mantêm normais. “Tudo indica que o nível da escolaridade pode fazer toda a diferença, funcionando como fator de proteção. Essas pessoas têm o que chamamos de reserva www.portalcienciaevida.com.br | psique ciência&vida 57 cognitiva que a fazem tolerar a doença sem que ela se manifeste”, diz Nitrini.

“O vírus da AIDS é a nossa base, pois pode ser detectado anos antes da manifestação da doença”

Não é à toa que o Alzheimer é hoje um campo de estudo prioritário na área médica. O aumento da longevidade da população mundial é o que mais preocupa, pois pode levar a uma maior incidência da doença em todo o mundo. No Brasil, por exemplo, o número de idosos chega à casa dos 19 milhões, cifra que poderá dobrar nas próximas duas décadas.

Em muitas regiões do mundo os exames epidemiológicos são escassos. Mas um relatório da Alzheimer’s Disease International (ADI), publicado na revista Lancet, uma prestigiada publicação científica da área médica, mostra que 24,3 milhões de pessoas têm a doença hoje. São ao todo 4,6 milhões de casos a cada ano. Isso representa um novo caso a cada 7 segundos. O número de pessoas afetadas dobrará a cada 20 anos, podendo chegar a 81 milhões em 2040. A previsão é de que o aumento seja de 100% nos países desenvolvidos, mas pode chegar a 300% em países como a Índia e China.

Novas esperanças

Uma nova classe de medicamentos para Alzheimer pode prevenir a formação dos emaranhados de proteína Tau e retardar o declínio das funções cognitivas. O medicamento experimental para tratar a doença de Alzheimer mostrou-se promissor nas primeiras experiências com humanos e traz esperança para os portadores desta condição. Os resultados preliminares do estudo foram apresentados na Conferência Internacional sobre Doença de Alzheimer de 2008, em Chicago, pelo professor Claude Wischik da Universidade Aberdeen.

O medicamento, conhecido como Rember (Methylthioninium chloride), foi testado em 321 pacientes com doença de Alzheimer leve ou moderada. Eles foram divididos em quatro grupos e cada um recebeu 30, 60 ou 100 mg da medicação ou um placebo. Após 19 meses de acompanhamento, os melhores resultados foram observados no grupo que usou a dose de 60 mg.

O estudo com humanos sugere que a nova medicação pode ser duas vezes mais efetiva que os tratamentos atualmente disponíveis. É a primeira evidência real de que uma nova droga pode retardar o declínio cognitivo em pessoas com Alzheimer tendo como alvo a proteína Tau, que causa a morte neuronal nesses pacientes. Essa proteína é capaz de manter a composição dos microtúbulos com rotação rápida conforme eles envelhecem – ou seja, os neurônios sem Tau poderiam ser resistentes à neurodegeneração.

A expectativa é de que as triagens clínicas envolvendo maior número de indivíduos comecem este ano e que o medicamento esteja disponível no mercado até 2012. Contudo, novos estudos são necessários para confirmar a segurança do Rember e estabelecer os benefícios que ele pode trazer a milhares de portadores desta condição.

Só nos Estados Unidos, a doença afeta 4 milhões de pessoas e é um problema de saúde pública. Os gastos envolvidos no tratamento da doença chegam a US$ 100 bilhões por ano. De acordo com estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a prevalência da doença de Alzheimer no Brasil é de 1,2 milhão de pacientes, com a incidência de 100 mil novos casos por ano. E a tendência é aumentar. Apesar do empenho da ciência, os tratamentos disponíveis para o mal permitem apenas suavizar os efeitos da doença.

O nível de escolaridade se mostra um fator importante no combate ao mal. Cientistas evidenciam a chamada reserva cognitiva na proteção das pessoas contra o Alzheimer. Estudar é uma das formas de ampliar esta reserva

O que torna difícil a luta contra a doença é que ela progride sem fazer alarde. Do momento em que surgem as primeiras lesões no cérebro até o surgimento dos sintomas, mais de uma década pode ter se passado. Há apenas uma forma de se precisar o diagnóstico da doença: fazendo a autópsia. “Hoje, o nível de acerto do diagnóstico é de 80% a 90%. Quando o médico erra, a doença de Alzheimer normalmente é confundida com doença vascular cerebral ou outras doenças degenerativas para as quais não existe tratamento. Nesse caso, não há prejuízo pela falta de precisão no diagnóstico”, afirma Nitrini.

“Das primeiras lesãoes no cérebro até o aparecimento dos sintomas, mais de uma década pode ter passado”

A doença, descrita pela primeira vez em 1907, por Alois Alzheimer, é uma desordem crônica e progressiva. Seus sintomas estão associados a alterações ocorridas em certas regiões do cérebro envolvidas nos processos cognitivos. Entre as diversas manifestações cognitivas, estão os distúrbios de memória, linguagem, desempenho visual, funções motoras, apatia, ansiedade, irritabilidade e alucinações. Essas manifestações podem resultar numa progressiva invalidez, caso não sejam empregadas drogas que aliviem os sintomas e impeçam o seu desenvolvimento.

Fonte: Portal Ciência & Vida – 28/09/2009. Disponível Aqui

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