Sexualidade e preconceito na velhice

Sexualidade e preconceito na velhice

O envelhecer, o amor e a sexualidade estavam passando por minha vida na convivência com minha mãe. Até então eu não tinha reparado como ela estava ficando velha mas não os seus desejos, esses me pareciam ali de latentes a manifestos.

Monica Cobra Teixeira (*)

 

Era uma noite quente e chuvosa de um janeiro qualquer se não fosse aquele o ano de 2017. Eu acabara de chegar cansada de um dia que havia me pesado mais que o normal, havia algo na minha vida que precisara mudar pois a insatisfação pessoal estava em reta ascendente.

Cheguei em casa e lá estava ela, ouvi do portão sua voz a falar com as crianças agitadas e pensei: “Ah não mãe, hoje não é um bom dia para conversar”. Olhei para o céu escurecido e agradeci ironicamente pelo que nem eu saberia nomear.

Entrei em casa e minha mãe estava na sala mais feliz que o normal, uma energia irradiava dela e eu não entendia muito bem. Estava eu num drama existencial e a felicidade dela naquele momento me incomodava. Ela perguntara se eu estava cansada, se eu estava bem, porém me parecia que não era atrás da resposta que ela estava, a razão perecia ser o estabelecimento de algum tipo de contato comigo, um contato mais íntimo. Ela queria falar. Ela desejava que eu perguntasse como estava a vida dela, como ela estava se sentindo e eu, de verdade, não estava a fim de saber de nada naquela noite.

Suportei-a durante um jogo de palavras da qual ela dizia e eu mal sabia do que realmente ela estava falando. Me lembro dela ter me trazido um bolo, coisa que há tempos ela não fazia, aliás, faz muito tempo que eu não sei o sabor da comida da minha mãe. Acredito que durante as variadas escolhas que fizemos no processo de viver, manter nossa relação na escala alta da intimidade não foi priorizada, muitas vezes parecia que, em um certo setembro de 1980 nos encontramos e passamos a conviver, e nada mais de relevante ocorreu entre nós, apenas o cotidiano.

Kimi Tomizaki é professora de Sociologia da Faculdade de Educação da USP e em seus estudos ela define que um conjunto geracional são as experiências comuns capazes de criar laços (profundos) entre determinados indivíduos que se sentem irremediavelmente ligados por um destino comum, creio eu que, apesar de poética esta frase não traz em si um significante sempre positivo.

Eu cresci numa família católica comum do interior de São Paulo onde o preconceito social reinava, a segregação era algo costumeiro e a missa aos domingos era obrigatória. Éramos uma família grande, minha mãe teve 6 filhos, sendo 5 mulheres e 1 homem, hoje uma irmã é falecida, meu pai participou mais da educação de meus irmãos, morreu quando eu tinha nove anos, vítima de um câncer. Minha mãe sempre foi trabalhadora, parecia incansável nesta tarefa, continuamente estava a produzir ou a se produzir, gostava de sair para dançar e se divertir e esse era um ponto de muita discussão em casa pois, minhas irmãs bem mais velhas do que eu, não viam aquilo com bons olhos. O abandono era sentido por todos. Quanto aos meus cuidados de infante, esses eram sempre repassados visto o escasso interesse que me era dedicado pela parte materna, me lembro de uma frase de minha mãe:

“- Eu vivi vinte e cinco anos para a casa e para os filhos, fui esposa e mãe. Agora é minha hora, vou viver a minha vida”.

Repensei esta frase por anos, me perguntando sobre querer que alguém viva uma vida por mim, não sei se eu queria esta dívida eterna nos meus ombros que já pesavam minhas próprias culpas, porém, às vezes me vinha a angústia de ser preterida e pensava “justo na minha vez ela foi viver a vida dela”. Não sobrou muito espaço para ela ser minha mãe, não éramos inimigas mas faltava amizade. Contudo eu não posso reclamar, fui uma criança desamparada dos afetos primários e de uma mãe suficientemente boa como diria Winnicott e nunca me faltou nada mais que isso, comida e agasalho sempre tive, e se esse era o conceito de bom status de cuidado então eu não poderia pleitear mais nada.

Atualmente somos menores em números e menor ainda em grupos de convivência íntima. Os anos e suas marcas passaram pela minha família com sua grafia intolerante e profunda, bem mais do que eu esperava. Hoje as dicotomias prevalecem.

Naquela noite, na sala de minha casa, no meio de tantos sentimentos de fuga, crases e fonemas minha mãe me informou:

“- Filha, eu estou namorando”.

Senti um misto de nada em mim, um vazio ecoou, a respiração baixou e meu cérebro solicitava que eu falasse algo, porém meu corpo não obedecia, fiz silêncio por alguns segundos. Breves e cruciais segundos, olhei e a vi…

Vi não tão somente uma senhora de 74 anos na minha frente, eu vi e pude reparar os olhos dela naquele instante, eles brilhavam. Ela me parecia bem feliz, radiante na verdade.

Puxei a cadeira e me sentei, dei início ao inquérito minucioso sobre quem era o namorado, como o conheceu, desde quando o conhecia, se tinha renda, se tinha casa própria, se já fora casado, se tinha filhos, se era debilitado fisicamente ou intelectualmente e assim por diante. Querer saber sobre as qualidades desta pessoa que a encantara naquela hora seria tarefa fácil e os possíveis comportamentos nocivos eu teria que procurar nas entrelinhas, caso houvesse. Entrar no assunto sexo com ela foi o mais desgastante, falar sobre camisinha, aids e transmissão de doenças sexualmente transmissíveis… que exaustivo! O ditado popular “mães não transam” me parecia muito confortável até aquele momento. E ela foi conversando comigo sobre isso, me explicando cada coisa, cada posição e sempre dizendo palavras que possivelmente poderiam me fazer dar créditos a esta relação. Confesso que desconfiei de tudo.

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E foi assim que, sentada naquela cadeira na mesa da sala de casa, vendo e ouvindo ela me dizer e reparando tudo o que podia me veio a frase do livro Ensaio sobre a Cegueira:

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” (José Saramago)

Essa palavra “repara” me deu o sentido de consertar. Estava falando com minha mãe como que uma autoridade, alguém que supostamente queria saber mais que ela, alguém que por alguns segundos estava disposta a conduzi-la por algum caminho sem ao menos perguntar se ela queria. Eu parecia as mães segurando forte no pulso dos seus filhos ao atravessar a rua rapidamente, enquanto o infante perde seu olhar na vitrine de qualquer coisa que o encante, as mães práticas não têm tempo de serem afetivas, elas estão sempre colocando tudo em ordem, na mais bela estética organizativa e, nada daquilo fazia sentido para aquela velha apaixonada na minha frente, ela estava desconectada deste assunto.

O envelhecer, o amor e a sexualidade estavam passando por minha vida na convivência com minha mãe e naquele momento aquilo estava sendo novidade pois até então eu não tinha olhado com interesse para isso, até então eu não tinha reparado como ela estava ficando velha mas não os seus desejos, esses me pareciam ali de latentes a manifestos, como um arco íris em dias úmidos de chuva.

Almeida e Lourenço (2008) clarificam a ideia de que incontestavelmente as pessoas anosas permanecem com seus pensamentos e desejos sexuais tal qual os jovens, e que isso entra em conflito com o compreender social familiar que resiste em apropriar-se deste fato, preferindo ignorar tal assunto, conduzindo-o ao esquecimento coletivo sobre o tema. Em outros tempos preocupação era com o fenecimento da vida, hoje o olhar se volta para uma preocupação com a qualidade desta. E afetos e sexo dizem respeito a qualidade de vida.

De um modo geral, os idosos são vistos com preconceito, porque ainda hoje a ideia de envelhecer é vista como sinônimo de doença e incapacidade. Sexualidade,  desejo e erotismo são voltados à juventude, o belo entra em consonância com corpos esguios e subjetivamente perfeitos e tudo o que vai contra isso é compreendido com preconceito e segregação. Confesso que eu pertencia a esta classe preconceituosa.

Ninguém pode estar na flor da idade, mas cada um pode estar na flor da sua própria idade.” (Mário Quintana)

Ao ver o meu comportamento comecei a reparar minhas atitudes, reiniciei um diálogo mais afetivo, questionei-a se estava feliz com esta fase que se encontrava, se a proposta que esta nova pessoa que entrara na sua vida se parecia com a que ela já tinha, se as diferenças que supostamente teriam era possível de serem amenizadas com admirações cotidianas, se esta relação a deixava segura para caminhar. Ela me confirmava positivamente tudo o que dizia, como uma adolescente que encontra o amor de toda uma vida que acabava de iniciar.

Em seguida, e na mesma hora, ela começou a falar em casamento com esta distinta pessoa que eu nem conhecia, em ficar noiva deste homem e, tudo aquilo soou estranho e um tanto rápido para mim. Minha ficha mal tinha acabado de cair, eu ainda estava digerindo o primeiro tópico e já estava parecendo um enxame de abelhas a zunir em meus ouvidos. Me lembro de questionar se a proposta dela seria acabar a vida “lavando cuecas”. Que machista eu fui nesta frase, senti vergonha de mim e pedi desculpas a ela por minha atitude, eu já saberia que não cabe somente às mulheres esta função de cuidado domésticos.

O ano havia acabado de iniciar e meus sentimentos confusos e cansados de uma mulher como outra qualquer que tenta pôr em prática suas aspirações, sentia a previsibilidade de tormentas, crises familiares à vista. Esta notícia não seria tão apreciada assim entre os outros membros de nossa família.

Resolvi fazer silêncio por uns dias, não contei nada a nenhum de meus irmãos. Tão logo minhas irmãs souberam do assunto, violentamente inflamadas e totalmente contra tudo o que estava acontecendo, chegaram os comentários.

Uma dizia:

“- A mãe deve estar desesperada mesmo, nem conhece o homem e quer por dentro de casa”.

A outra proclamava com tom de indiferença:

“- Eu não estou nem aí, não é a minha vida mesmo”.

Por vezes o diálogo se voltava à minha pessoa:

“- A mim ela não disse nada, só a você ela disse sobre este assunto, a nós outras filhas isso foi imposto como decreto. Ela levou o namorado em casa sem ser convidado”.

Um conflito geracional estava instalado e o grupo do contra se formava em alianças etéreas, o pouco de sustentação que a família resistia em se segurar ruiu. Eu não queria me posicionar e nem tomar partido, mas até quando não se decide por nada se decide por alguma coisa.

Ao contrário do que se pode pensar, a velhice é uma idade tão frutífera como qualquer outra no que se refere à vivência do amor e da sexualidade, é uma crença limitante imaginar que, com os passos lentos proporcionalmente mais lento será as questões ligadas a afetividade e ao sexo, pensar desta forma configura um ato preconceituoso.

Jahoda e Ackerman apud Almeeida e Lourenço (2018) afirma que”:

Todos nós prejulgamos continuamente, a respeito de muitos assuntos, e essas generalizações redundam numa economia de esforço intelectual. O preconceito aparece quando os fatos não estão ao nosso alcance, enquanto que no pensar estereotipado os fatos não contam, mesmo quando os tenhamos à mão.

Fiquei a observar os movimentos passionais dentro desta situação familiar. Era complicado deixar de entender a posição de cada parte que reivindicava suas afetividades e faziam suas análises por suas próprias lentes, uma fúria advinda de tantas subtrações que me fizeram refletir o quanto determinadas ações se tornam verdadeiras emboscadas quando feitas repentinamente, na ansiedade de uma conquista.

Eu assisti incrédula a capacidade de enfrentamento de uma senhora de 74 anos de mudar sua rota de vida por uma proposta que a ela parecia bem mais vantajosa, por um amor que resgataria de tal momento que somente a ela seria possível descrever. Me deparei com a solidão de minha própria alma, com o abandono, com a incredulidade das circunstâncias, com a frieza que envolve os sentimentos, com a distância afetiva na qual eu me encontrava. Me vi no preconceito, naquele momento minha mãe estava vivendo algo próximo do que eu chamaria de felicidade, ela era desejada, e não é isso que no fundo todos nós queremos, ser o desejo do OUTRO? Naquele instante, tão breve e fugaz, com ela sentada na minha frente ao relatar sua vida, desejei profundamente trocar os nossos papeis.

(*) Monica Cobra Teixeira – Graduada em Psicologia – Faculdade Anhanguera – São José dos Campos. Julho 2018; Curso extensão Gerontologia Social PUC – novembro 2018; Ações Estratégicas para Pessoas Idosas – UNASUS – Fundação Oswaldo Cruz; Envelhecimento da População Brasileira – UNASUS – Fundação Oswaldo Cruz; Avaliação Multidimensional da Pessoa Idosa – UNASUS – Fundação Oswaldo Cruz; Condições Clínicas e Agravos à Saúde da Pessoa Idosa – UNASUS – Fundação Oswaldo Cruz; Formação em Saúde Mental na Atenção Primária – UNASUS – UFMA. Atuação atual no Espaço Cogitare. Texto escrito no curso de extensão Fragilidades na Velhice: gerontologia social e atendimento ministrado pela PUCSP no segundo semestre de 2018. E-mail: [email protected]

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