Redundâncias

Redundâncias

Estudava numa escola chata, com professores chatos. O de português tentava ensinar coisas estranhas como retórica, metáfora, e passavam lições de redundância.

Walcemir de Azevedo de Medeiros (*)


Desconfiava que minha mãe tinha algum tipo de complô com professores. Não compartilhavam comigo o gosto por literatura de qualidade. Estudava numa escola chata, com professores chatos. O de português tentava ensinar coisas estranhas como retórica, metáfora, redundância, e mandava fazer resumo de Memórias Póstumas de Brás Cubas. “Com essa obra, Machado de Assis inaugurou o Realismo no Brasil”, ele dizia. Eu não estava interessado. Até gostava de ler, mas Machado não era minha preferência.

Chato, porém obstinado, ele trazia letras de músicas para que interpretássemos, como Roda-viva, Domingo no Parque ou A Banda, de autoria de uns jovens que começavam a fazer sucesso no rádio. “Aqui está a vanguarda da música popular brasileira!” Seus olhinhos até brilhavam. Eu interpretava canções e resumia livros embalado pelo tédio de quem precisa tirar pelo menos nota cinco para ficar tudo bem em casa. Em tempos de educação severa e pais bravos, não fazia bem à pele ser reprovado na escola.

Ainda não havia internet ou redes sociais, que hoje são fontes fiéis de informações seguras. Aparelhos de televisão eram raros ainda. Então nosso aprendizado era mesmo aquele tirado de boas leituras e de conversas de rua.

Em termos de literatura, eu tinha gosto sofisticado. Meu autor predileto era Marcial Lafuente Estefanía. Espanhol de Toledo, era um fenômeno: consta que escreveu mais de 2600 livros. Eram livros de bolso, quase todos de faroeste, com pouco mais de cem páginas encadernadas em papel-jornal.

Mas ninguém é tão criativo assim, então Estefanía usava o velho truque de repetir o enredo, só modificando lugares, pessoas, e um ou outro detalhe. Deve ter feito isso pelo menos umas 2599 vezes. As historinhas eram mais ou menos assim: um sujeito muito rude e rápido no revólver, mas do bem, chegava à cidade e atirava em todos os bandidos. O herói era também muito metódico. Se o bandido era bonzinho, só atirava nas mãos, mas se o meliante era do tipo malvadão, sempre acertava “entre os olhos”. Aqueles livrinhos eram carregados de clichês. Tiros “entre os olhos” era o mais recorrente deles. Li mais de trezentos daqueles livros.

A literatura produzida pela editora Ebal era também da melhor qualidade, porque dela saíam os clássicos quadrinhos Superman, Batman, Tarzan. Havia também outras editoras e heróis, como o Zorro, que era mexicano e inimigo do sargento Garcia.

Certos mocinhos eram autênticos, como Mandrake e Flash Gordon. Outros sofriam de dupla personalidade, pois precisavam de identidades secretas. Algumas ridículas de tão óbvias. Clark Kent só tirava os óculos, desmanchava o topete, vestia uma roupa apertada com as cuecas por cima das calças, capa, e lá estava o Superman. Don Diego de la Vega punha máscara nos olhos, capa — heróis gostavam de capa — e pronto, surgia o Zorro. Sargento Garcia nunca desconfiava, mesmo que ficasse sempre à mostra o resto do rosto e aquele bigode inconfundível que só Dom Diego tinha. Mesmo assim, eu gostava. Li centenas de gibis.

Não aprendi na escola meu bom gosto para literatura. Minhas preferências também não vieram de herança materna, porque minha mãe proibia a leitura de revistas em quadrinhos e de livros do Estefanía. Eu lia escondido. Se ela visse, dava bronca e guardava as obras em lugar secreto. Acaso percebesse que eu as tinha encontrado, então me ensinava a retórica, a metáfora e a redundância. Se não estivesse muito brava, ficava na retórica e na metáfora, que eram transmitidas a chineladas. Mas quando estava mesmo zangada, aí aprofundava os ensinamentos. Nessas ocasiões, ela era mais meticulosa, e eu recebia lições de redundância à base de varinhas de guaxuma. Guaxuma é uma planta medicinal. O chá é diurético. Serve para pressão alta, mas suas varas, que são bem molinhas, serviam também à época como instrumento de ensino. Bastavam três varadas e eu ficava mais dedicado aos livros da escola por um tempo.

As aulas eram chatas no ginásio. O professor de história mandava fazer um grande círculo com as cadeiras para que pudéssemos debater atualidades. Queria que discutíssemos atos institucionais do governo militar, mas eu não estava interessado. Eu gostava de debates, mas não daqueles. Quando se empolgava, o professor falava palavras esquisitas, como ideologia ou dialética. Era uma tortura aguardar pela sineta do recreio e correr para o pátio a chutar bolas de meia.

Em matéria de debates, meu interesse era discutir coisas relevantes para a humanidade, como estabelecer quem seria o vencedor em uma luta entre Batman e Fantasma. Se a resposta fosse óbvia, modificávamos algumas variáveis: e se Batman estivesse sem cinto? Quem ganharia uma briga entre o Homem Aranha e o Superman enfraquecido pela kriptonita vermelha? E se os heróis com capa enfrentassem os sem capa, todos sem poderes e sem armas? A depender das variáveis envolvidas e do grau de conhecimento técnico dos debatedores, a discussão poderia ficar animada e demorar um tempo.

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Minha mãe perguntava se eu já não estava grandinho para aquele tipo de conversa. Não estava. Ela nem imaginava o quanto esses debates traziam conhecimentos sobre táticas de combate que me seriam úteis ao longo da vida. Numa dessas oportunidades, quase tive uma participação heroica, embora pouco compreendida, num episódio bélico.

É que certa tarde ficamos sabendo que a patota da Rua Japonês estava a caminho do Beco, lugar em que morávamos, para nos surrar. Patota era a palavra que usávamos no lugar de galera. Era caso de vingança, porque o Dazinha, um dos nossos, tinha batido no irmão de um deles.

Rixas dessa natureza não eram raras, mas aquela me deixava um tanto quanto angustiado, pois os meninos da Japonês, embora poucos, eram maiores, mais fortes e mais violentos. Precisávamos de um bom plano, que ficou por conta do Dazinha e do Peroba, os maiores da nossa turma. Chegaram à conclusão de que nosso trunfo seria a quantidade de combatentes, porque havíamos conseguido reforços de patotas parceiras.

Em maioria, formaríamos dois grupos. Só alguns expostos na rua, a fingir surpresa com a chegada do inimigo. Em maior número, ficaríamos escondidos no mato ao redor. Fui designado para a equipe do mato. Entraríamos todos em combate ao sinal do Peroba no momento em que a turma da rua Japonês estivesse tão próxima que já não pudesse mais fugir. “Vamos quebrar eles na pancada”, disse Dazinha.

Tomamos nossas posições em torno do local em que se daria a batalha, entrada do Beco. Equipe da rua, na rua; grupo do mato, no mato. Sabedor que era da truculência dos meninos invasores, vi a oportunidade de usar meus vastos conhecimentos de táticas e estratégias obtidos na literatura e nos debates e resolvi executar um outro plano.

Bem próximo ao ponto da emboscada, havia um morro íngreme com muitas tocas formadas entre rochas e mata fechada. Sem que ninguém percebesse, saí por trás do meu esconderijo do Beco e fui me ocultar numa dessas tocas bem no alto no morro. Ali ninguém me encontraria e eu teria boa visão do campo de batalha. Poderia então gritar as orientações táticas para a minha turma, entregando a movimentação do inimigo, o que seria decisivo para nossa vitória.

Não pude concretizar a ideia, porque passou toda a tarde e o inimigo não apareceu.

À noitinha, ao reencontrar a turma e dar a exigida explicação sobre meu desaparecimento, precisei novamente fazer um rápido recuo tático, dessa vez para casa, porque logo percebi que eles também queriam me passar lições de redundância.

Dei um tempo. Aproximei-me de mansinho só três dias depois, quando estavam mais calmos e já haviam desistido do castigo físico. Ficaram me atribuindo, por semanas, alguns nomes que não posso repetir aqui. Eu os perdoava. Não faziam por maldade, só por falta de compreensão da complexa arte das táticas, estratégias e artimanhas aplicáveis em duelos e combates.

(*) Walcemir de Azevedo de Medeiros – Rio de Janeiro/RJ. E-mail: [email protected].

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