Recicle sua mente… conte histórias e ressignifique memórias

Recicle sua mente… conte histórias e ressignifique memórias

Reciclar a mente em relação à pessoa idosa é uma ação emergente e urgente, pois significa atribuir a ele um novo papel, tirando-o da condição de descartável, sem utilidade.

Katia Saraiva (*)


Reciclar é preciso, talvez dissesse o poeta Fernando Pessoa. Reciclar é um verbo que evoca uma ação, o ato de transformar algo que não tem mais serventia em algo novo. Reciclar se transformou na palavra de ordem do mundo contemporâneo, pois se trata de um dos princípios fundamentais da sustentabilidade e esta, por sua vez, entoa a necessidade urgente de criarmos uma relação mais harmônica e sustentável entre o ser humano e o meio ambiente. A ação do verbo reciclar, a reciclagem, indica processo de transformação de algo que foi descartado, considerado sem utilidade, em outra coisa que é novamente recolocada em um novo ciclo.

Dito de outro modo, significa dar uma nova vida a esse algo. Além disso, reciclar enquanto um verbo transitivo direto e nominal aponta outro tipo de ação, não se trata mais de uma atuação sobre um objeto externo, mas de uma ação sobre si mesmo, significa atualização de saberes de uma pessoa, uma requalificação.

O processo de reciclagem, nesse sentido, se assemelharia ao processo psicológico de ressignificação, que representa mudança na forma de perceber as coisas que, por consequência, implicaria uma modificação na forma de agir, que tanto pode ser um processo individual/singular quanto coletivo/social. Reciclar, portanto, é uma ação emergente, necessária e transformadora. E quando complementamos com a expressão “sua mente”, não só construímos uma frase, mas agregamos ainda mais valor à mesma e a transformamos em uma “frase-legenda” deste ato.

Assim, “recicle sua mente” serve para apresentar o Sr. Eulei, proprietário do carrinho de coleta de recicláveis, um senhor de cabelos brancos, sorriso largo e cativante que convida para aproximação. Ele aceitou o convite para participar do projeto Sacudindo a Memória, contar sua história. Então, quando chegamos para a reunião semanal de planejamento de nossas ações, o aluno Tiago e a aluna Valquíria, ambos extensionistas do curso de psicologia, logo manifestaram o desejo de serem a dupla responsável pela entrevista, ou melhor, os ouvintes principais do idoso narrador – Sr. Eulei.

Sr. Euleu cercado pelos alunos participantes do projeto “Sacudindo a Memória”, coordenado pela profa. Kátia Saraiva

Marcamos o encontro com o Sr. Eulei no mesmo local que o achamos – na praça – ou seja, um lugar conhecido tanto para o Sr. Eulei quanto para nós. Escolhemos esse ambiente, pois ainda tínhamos dúvidas se haveria alguma interferência do espaço físico na condução da entrevista e na aproximação intergeracional. No projeto “Sacudindo a Memória” construímos um lugar entre mundos, um lugar transicional de comunicabilidade interpessoal e intergeracional, um local onde as histórias funcionaram como objetos transicionais, como elementos mediadores e facilitadores na construção de relações.

É na experiência concreta de encontro de um rosto humano com outro rosto humano que nos humanizamos. Desse modo, pode-se dizer que o encontro face-a-face entre o Sr. Eulei e Valquíria não foi só revelador da existência de um outro, mas se constituiu em um posicionamento ético e responsável diante do outro. Ela percebeu o valor do momento e a importância do processo de estar ali naquela relação, pois ela mesma diz: “Eu não me apressei. Quis viver o momento presente. Escutá-lo.”

Na verdade ela havia assimilado e processado muito bem o que havíamos trabalhado durante as oficinas preparatórias do projeto de extensão: ter uma postura ética; manter uma escuta atenta e interessada; ter um cuidado com a escolha e o manejo das palavras a serem utilizadas com cada idoso e, sobretudo ter uma conduta acolhedora, afetiva e humanizadora.

Assim, a dupla narrador-ouvinte criou uma espécie de campo relacional confiável e um idioma inter-humano que dispensa qualquer manual de tradução, uma linguagem que é comum e compreensível a todos em qualquer idade, um idioma que comunica algo que vem do “coração”.

Sr. Eulei e Tiago no Globo Repórter

A relação intergeracional construída desde a época do projeto Sacudindo a Memória permanece entre o Sr. Eulei e Tiago, e compõe a tese de meu doutorado em Psicologia realizado na PUC-MG, que foi transformada no livro Sacudindo a Memória: tempos de tessituras intergeracionais. Aliás, este texto foi extraído da minha tese.

Não perca nenhuma notícia!

Receba cada matéria diretamente no seu e-mail assinando a newsletter diária!

Os leitores podem acompanhar essa linda relação no Programa Globo Repórter, produzido por Arlete Heringer e Marcia Monteiro, com reportagem de Sandra Annenberg, e exibido no dia 26 de maio. Assistam no Globoplay: https://globoplay.globo.com/v/11651660/

(*) Katia Saraiva – Psicóloga Clínica, Dra em Psicologia, Especialista em Programas Intergeracionais (Univ. Granada Espanha). Idealizadora do @Sacudindoamemoria. É docente da PUC-Poços de Caldas/MG. É também colaboradora do Portal do Envelhecimento, ministrando diversos cursos e palestras, além de textos.

Fotos: arquivo pessoal

Atualizado em 5/6 às 18h55

Em tempo: Em breve o Portal do Envelhecimento anunciará o curso “Psicologia e Envelhecimento”, ministrado pela profa. Katia Saraiva. Aguardem!


https://edicoes.portaldoenvelhecimento.com.br/novo/produto/sacudindo-a-memoria-tempos-de-tessituras-intergeracionais/

Portal do Envelhecimento

Compartilhe:

Avatar do Autor

Portal do Envelhecimento

Portal do Envelhecimento escreveu 4232 posts

Veja todos os posts de Portal do Envelhecimento
Comentários

Os comentários dos leitores não refletem a opinião do Portal do Envelhecimento e Longeviver.

LinkedIn
Share
WhatsApp
Follow by Email
RSS