Raio-x da saúde suplementar

O setor de planos de saúde foi um dos que mais contribuíram com doações de campanha. Só o PMDB, partido do atual ministro da saúde, Marcelo Castro, recebeu mais de R$ 13 milhões. E a partir de manobras no parlamento, foi permitida a entrada de capital estrangeiro na saúde, e com isso fundos de investimento internacional vêm adquirindo redes de hospitais com o objetivo de impor sua visão mercantil. Um direito social que fora conquistado a duras penas é transformado em bem de consumo. O que era para ser gratuito, universal e igualitário, está sendo dividido em categorias, favorecendo os que detêm maior renda.

Leandro Farias (*)


Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a sociedade brasileira obteve diversas conquistas, fruto de muita luta. Uma delas foi o direito universal à saúde, presente no artigo 196. Porém, vivenciamos uma dicotomia, uma vez que a mesma Carta permitiu a mercantilização desta, por meio do artigo 199, que apesar de constar em sua redação que a saúde privada atuaria em caráter complementar, notoriamente observamos o objetivo de inversão dessa lógica de maneira predatória por parte dos empresários do setor, o que é natural visto do modelo capitalista de obtenção de lucro a qualquer custo, porém abominável diante da concepção de saúde como um direito social.

Ao longo dos anos, o Brasil passou por uma reformulação no que tange a desigualdade social e econômica, no entanto o processo de inclusão se deu por meio do impulso ao consumo de setores da sociedade, indo na contramão do fortalecimento dos serviços públicos ofertados pelo Estado. Como consequência, tivemos a expansão do setor privado, que contou com o apoio do Estado por meio de linhas de crédito no BNDES, parcerias público-privadas (PPPs), renúncia fiscal, isenção de impostos, renegociação ou até perdão de dívidas, uso de reservas técnicas, entre outras ações com o objetivo de suprir a deficiência do setor público sucateado.

Em relação ao Legislativo, apesar do financiamento empresarial de campanha ser inconstitucional, ao longo das eleições ele serviu de plataforma para a candidatura de centenas de parlamentares país afora. O setor de planos de saúde foi um dos que mais contribuíram com doações de campanha, tendo investido mais de R$ 52 milhões nas eleições de 2014. Só o PMDB, partido do atual ministro da saúde, Marcelo Castro, recebeu mais de R$ 13 milhões. E a partir de manobras no parlamento, foi permitida a entrada de capital estrangeiro na saúde, através da Lei nº 13.097, e com isso fundos de investimento internacional, como a gigante Carlyle, vêm adquirindo redes de hospitais, até mesmo filantrópicos, com o objetivo de impor sua visão mercantil diante de um direito social, gratuito e universal, transformando-o em bem de consumo, e como consequência garantindo um retorno financeiro elevado, na busca do lucro em detrimento da qualidade.

Em 2014, o órgão que regula e fiscaliza o setor de planos de saúde, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), recebeu 90.945 reclamações por parte dos usuários dos planos. Estas envolvem negativas de cobertura, reajustes abusivos, descumprimento de contratos, rescisão unilateral de contrato, entre outros. Em resposta às reclamações, a agência abre processos administrativos que, ao constatar infrações, geram multas às operadoras de planos de saúde. Porém, as empresas recorrem da decisão administrativamente e, ao se esgotar as possibilidades de recurso, levam para a esfera judicial. Assim processos, podem levar até doze anos para serem concluídos e, ao final, quando não prescritos, podem ser negociados através do chamado Termo de Compromisso de Ajuste de Conduta (TCAC), que possibilita a redução das multas aplicadas em até 5% do valor total, segundo o artigo 10 da Resolução Normativa n° 372, publicado pela própria agência. Cabe ressaltar que em 2014 o atual presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, foi relator da Medida Provisória 656, que trazia em um de seus artigos o perdão da dívida dos planos aos cofres públicos no valor de R$ 2 bilhões.

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Outra punição aplicada pela agência é a cobrança de ressarcimento ao SUS, presente no artigo 32 da Lei 9.656 (Lei dos Planos de Saúde). Quando um indivíduo que é detentor de plano de saúde por algum motivo realiza algum procedimento pelo SUS que consta no rol de procedimentos assinado em contrato com a operadora, o valor gasto na realização do procedimento deve ser repassado ao sistema único, via Fundo Nacional de Saúde. Cabe ressaltar que o atual presidente da agência, José Carlos de Souza Abrahão, já se pronunciou contrário à medida em artigo publicado pela Folha de S.Paulo em 2010, e presidiu a Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNS), patronal que representa as operadoras de planos de saúde e que moveu uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) visando impedir essa cobrança (ADI 1931).

Apesar de haver punições, não existe garantia de pagamento por parte das operadoras. A dívida dos planos de saúde com o governo em relação a multas aplicadas gira em torno de R$ 1,5 bilhão. Em relação ao ressarcimento ao SUS passa dos R$ 500 milhões, e esse valor tende a aumentar por conta da cobrança anunciada este ano, de procedimentos de média e alta complexidade que antes não eram cobrados. Como pode um setor que tem o lucro anual equivalente ao orçamento destinado à saúde pública, R$ 100 bilhões, apresentar uma dívida de mais de R$ 2 bilhões aos cofres públicos? Lembrando que o setor atende a apenas 25% da população, enquanto o SUS, além de cuidar dos outros 75%, também se encarrega dos que obtiveram negativa de cobertura por parte dos planos, além de realizar procedimentos de alta complexidade e onerosos, como transplantes, vacinação, entre outros.

Assim, a saúde, que segundo a Constituição é de responsabilidade do Estado, vem se tornando direito do consumidor, a visão humanizada é substituída pela de mercado e a relação médico-paciente se torna empregado-cliente. Segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tramitam em torno de 400 mil processos judiciais envolvendo assistência à saúde, tanto pública quanto privada. Balanço feito em 2011 apontou 250 mil ações, ou seja, houve um avanço de 60% no fenômeno crescente de judicialização da saúde.

Observamos um direito social que fora conquistado a duras penas sendo transformado em bem de consumo, e assim o que era para ser gratuito, universal e igualitário, foi dividido em categorias de maneira a favorecer uma pequena parcela da sociedade, os que detêm maior renda. Em países ditos desenvolvidos, a despesa com a saúde é equivalente a 70%, enquanto no Brasil o gasto é de 43,7%, cabendo às famílias arcar com 56,3%. Mas, por conta da crise econômica mundial, no Brasil estamos presenciando uma medida típica do capitalismo que é o processo de oligopolização e verticalização envolvendo os setores da saúde privada como operadoras de planos de saúde, hospitais e clínicas, rede de laboratórios, entre outros. E na população houve a redução de renda, culminando na perda da capacidade de consumo por parte de setores da sociedade, que passaram a depender dos serviços públicos historicamente negligenciados pelo Estado.

(*)Leandro farias é farmacêutico sanitarista da Fiocruz e coordenador do Movimento Chega de Descaso. O artigo e a imagem foram originalmente publicados no Le monde diplomatique Brasil em 17/2/2016. Reprodução Aqui, em 19/02/2016.

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