Quando os filhos passam a cuidar dos pais

Quando os filhos passam a cuidar dos pais

Quando os filhos passam a cuidar dos pais é preciso reduzir o sofrimento desses cuidadores, com medidas simples, junto com o atendimento profissional.


O aumento da expectativa de vida tem trazido discussões sobre o cuidado, especialmente quando se considera a diminuição do número de filhos por família e o crescente ingresso deles no mercado de trabalho depois de formados. Isso resulta de menos cuidadores familiares e da necessidade de profissionais, o que não exclui a importância do gerenciamento muito próximo dos filhos. Há, portanto, uma inversão de papéis que antes passava despercebida, vista a baixa expectativa de vida.

Essa situação é ainda mais delicada quando há um processo de demência, pois a funcionalidade física pode estar muito preservada e, com a perda paulatina da capacidade cognitiva, ocorre um distanciamento causado pela falta de memória, fazendo sofrer aqueles que são esquecidos aos poucos. Mesmo assim são os mesmos que passarão a cuidar para que este ser querido não se machuque, preserve a dignidade e viva cercado de atenção. A exposição a situações incômodas muitas vezes pode levar ao afastamento da convivência social, o que agrava ainda mais as consequências da doença.

O que pode ser feito

É sempre muito difícil para um familiar sentir-se alijado da vida de alguém com quem cresceu e aprendeu sobre a convivência nos diversos grupos sociais. Quase sem perceber, as atitudes passam a ser diferentes e o esquecimento torna-se mais frequente, criando situações que podem comprometer a confiança na capacidade daquele que, antes, decidia acertadamente como dirigir uma família e organizar a moradia. Um objeto perdido que continua no mesmo lugar, a dificuldade de organizar um evento familiar ou planejar o período de férias: a vida em família passa a ser inconstante.

A diminuição da autonomia passa a implicar na necessária condução da independência de um parente idoso, o que passa por momentos de confusão e contrariedade pela dificuldade de compreender porque um filho não aceita a vontade do pai ou mãe. Na verdade, essa vontade pode ser um desejo irrealizável ou o risco de uma exposição a uma situação ridícula e, portanto, negá-la é uma decisão lógica para esse filho. Implica em conviver com alguém que ainda se coloca como um administrador das questões familiares porque lembra claramente disso, mas não recorda dos momentos em que se mostrou confuso ou antissocial.

Perceber que o comportamento mudou não é simples para quem convive diariamente com pais que apresentam sinais de um processo demencial, causando dúvidas, temores e, às vezes, negação, por acreditar que isso só acontece com outras famílias.

Consultar um geriatra certamente é o melhor caminho, mas antes é preciso envolver essa pessoa no interesse de fazer a consulta, pois é difícil compreender claramente que isso pode estar acontecendo e que decisões devam ser tomadas. Há planos de gerenciamento da doença que são elaborados por gerontólogos que, juntamente com o geriatra, oferecem conforto para a pessoa idosa e seus familiares.

Exercícios para a mente são importantes para preservar um processo de perdas que não tem cura, e possibilitam a manutenção de parte da memória. Porém, a familiaridade com a moradia igualmente é componente importante desse processo, o que se torna um coadjuvante essencial para os cuidadores que convivem com pais com demência.

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Ambientes da moradia

É preciso considerar que moramos em uma unidade habitacional, mas também no entorno imediato, com características de vizinhança que determinam a comunidade à qual pertencemos. Assim, preservar o contato com a rotina, mesmo com orientação para que seja acionada emergência em qualquer momento de desorientação, mantém a pessoa útil com o que resta da sua autonomia. Avisar os comerciantes e os vizinhos mais próximos sobre a situação e estabelecer roteiros seguros em pequenos mapas simplificados, além de adicionar uma indicação do nome e contato de quem procurar, caso outro cidadão perceba a desorientação na rua, são medidas simples e que podem funcionar no início do processo.

Morar em condomínio também favorece o controle pela presença de porteiros que, se avisados sobre a condição, podem conduzir delicadamente a pessoa com demência para uma situação segura, sem violência ou negação. Além disso, vizinhos podem ser um importante suporte social na ausência dos filhos cuidadores ou na falta de profissionais, pois estarão atentos ao movimento se assim estiverem dispostos.

De qualquer modo, o relacionamento com funcionários e moradores de um condomínio permite que haja a extensão do cuidado de modo controlado até quando possível, desde que já não seja necessária rotina alimentar e higiene supervisionada. Há, ainda, a possibilidade de vivenciar pátios e jardins com segurança, possibilitando banhos de sol e interações com pessoas em diferentes faixas etárias.

Quanto ao interior da unidade, elementos que estimulem a memória devem ser mantidos para garantir a tranquilidade do morador com demência. Tapetes podem ser realocados caso representem risco de quedas, mas é preciso evitar retirá-los da vista dessa pessoa. Memórias afetivas são fundamentais para garantir a orientação dentro do ambiente privado e qualquer mudança pode oferecer desconforto nesse lugar. Além disso, armazenar produtos alimentícios suficientes pode garantir que não haja excessos, assim como os utensílios devem ser os necessários. Tal situação pode oferecer segurança e maior tranquilidade aos filhos cuidadores, especialmente quando não estão juntos a pais com demência.

Quando os filhos passam a cuidar dos pais, seja por demência ou outras doenças, os papéis são invertidos. É preciso reduzir o sofrimento desses cuidadores, com medidas simples para serem tomadas junto com o atendimento profissional. Arquitetos e gerontólogos, juntos, podem corroborar com esse processo.

Foto de cottonbro studio/pexels.


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Maria Luisa
Maria Luisa Trindade Bestetti

Arquiteta e professora na graduação e no mestrado da Gerontologia da USP, tem mestrado e doutorado pela FAU USP, com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. Pesquisa sobre alternativas de moradia na velhice e acredita que novos modelos surgirão pelas mãos de profissionais que estudam a fundo as questões da Gerontologia Ambiental. https://sermodular.com.br/. E-mal: maria.luisa@usp.br

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Maria Luisa Trindade Bestetti

Arquiteta e professora na graduação e no mestrado da Gerontologia da USP, tem mestrado e doutorado pela FAU USP, com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. Pesquisa sobre alternativas de moradia na velhice e acredita que novos modelos surgirão pelas mãos de profissionais que estudam a fundo as questões da Gerontologia Ambiental. https://sermodular.com.br/. E-mal: maria.luisa@usp.br

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