Precisei fechar os olhos para enxergar mais longe

Foi muito prazeroso conversar com D. Olga. Com sua percepção de mundo e capacidade criadora, o cotidiano se transforma em poesia. Dessa forma ela encontrou um meio para expressar suas paixões, incertezas, desejos e crenças. Em alguns momentos nossa conversa era interrompida para que D. Olga pudesse expressar de forma poética o assunto em pauta.

Marisa Feriancic

 

Não é só por meio da poesia que D. Olga enxerga o mundo à sua volta. Ela é participante ativa do Fórum da Terceira Idade de Pinheiros, no qual defende suas idéias. Não quis me contar muito sobre essa atividade, mas sei que é grande defensora dos direitos dos idosos. Diz-se muito briguenta quando vai ao fórum. Reclama que os idosos não reivindicam, não brigam pelos seus direitos. Diz também que eles têm muitos direitos que desconhecem, mas que têm deveres também.

Dona Olga Figueiredo Augusto nasceu no dia 18 de fevereiro de 1935, na Fazenda Olhos D.´Água em Vila Bonfim, Ribeirão Preto – S. P. Como escritora assina Olga Figueiredo. Tem cinco livros editados. É casada, tem um filho de 49 anos e uma filha de 45. Fala com muito orgulho que já tem 5 netos.

Os laços afetivos

Nasci em Ribeirão preto, e vim para São Paulo com 3 anos. Meus pais tiveram 10 filhos. Seis mulheres e quatro homens. Aprendi muito com os meus pais. Eles foram exemplos de perseverança e otimismo. Sou filha de João Rodrigues Figueiredo e de Dona Alexandrina Simões Figueiredo. Meu pai era português e minha mãe era filha de portugueses. Meu pai morreu cedo, com 70 anos. Minha mãe viveu muito bem até os 95 anos. Quando ela chegava lá em casa e via uma roupa no tanque, lavava e já punha no varal. Em uma época minha mãe trabalhava numa fazenda e meus irmãos precisaram sair da escola. Ela foi à cidade, comprou cadernos de caligrafia e começou a ensinar a eles a escrever e fazer contas, juntava também as crianças vizinhas. E ela só tinha o terceiro ano primário. Meu irmão tinha uma letra maravilhosa. Meu pai também. Hoje somos sete irmãos. Faleceram 2 irmãos e uma irmã. Moram todos em São Paulo.

Doces lembranças

Quando viemos para São Paulo fomos morar numa chácara onde meu pai plantava batatas, flores e todos os tipos de verduras de acordo com a época. A chácara tinha um barracão de madeira e uma terra muito boa para plantar. Nos finais de semana juntava vizinhos, parentes, brincávamos todos juntos. Brinquei bastante quando criança. Andava descalça, trabalhava, subia em árvore, me divertia; era muito bom. Eu já tinha dez anos e não tinha sapato, em compensação também não tinha pé chato. Hoje as crianças têm pé chato e usam botam, tênis ortopédicos. Têm sapato e adoram ficar descalças. As crianças têm poucas oportunidades de andar descalças. As pessoas se queixam muito da vida. Nunca me queixei.

Meu pai sempre dizia: “Viver é fácil o difícil é saber viver”; saber viver com o que o tem,com o que conseguiu. Aprendemos a viver sem reclamar. Sempre trabalhei e aprendi muita coisa com eles. Não adianta só os pais ensinarem. Tem que viver procurando acertar. Acredito que todos aqueles que vão à luta, na simplicidade, na humildade, querendo aprender, sempre dá certo. Dar certo não é viver com muito dinheiro. É aceitar bem a vida que tem, ser dona de si. Sou um pouco dona de mim.

Na época que nós morávamos na Chácara, passamos por uma fase da guerra. Eu ia buscar pão, eles só vendiam meia “bengala” para cada um. Enquanto esperava na fila do pão a gente ficava brincando. Passava a cavalaria na rua e a gente nem assustava. Tudo isso fez parte do cenário da minha infância.

Minha mãe lavava roupa e os irmãos maiores ajudavam a criar os menores. Ajudávamos bastante minha mãe. Ela punha a roupa para quarar, engomavas os colarinhos das camisas, passava um montão de roupa. Tudo com o ferro a carvão. Às vezes caía uma cinza no colarinho e ela tornava a lavar. Nunca vi minha mãe se queixar da vida. Meu pai também foi um exemplo para mim. Lembro dele plantando batatas na chácara. Eu tinha uns sete anos. Tinha um senhor que ajudava ele na plantação. Um dia esse ajudante faltou e ele ficou preocupado.

Eu olhava para meu pai, ele tirava o chapéu, limpava o suor e falava: “Meu ajudante não chega e logo vai chover”. Eu perguntei a ele: “Será que é tão difícil plantar batatas?” Ele olhou para mim e disse: “Será que você poderia me ajudar? Nesse momento mostrou-me a palma de sua mão e falou:” Calcule dois palmos do seu. Em seguida começou a fazer as carreirinhas na terra e eu plantava os brotinhos das batatas virados para cima. Eu aprendi brincando. Logo em seguida ele cobria as carreirinhas com a terra. Assim que terminamos de plantar as batatas caiu uma forte chuva. Ele tirou o chapéu olhou para cima e agradeceu. Foi uma cena tão bonita que eu jamais esqueci.

Os exemplos que os pais deixam pra gente contam mais do que as palavras. Meu pai pegava o cabeçalho do jornal e ele fazia a gente ler para ele. Ensinava eu e meus irmãos. São atos, são exemplos verdadeiros. Conta mais do que discurso. Às vezes eu vejo palestras que as pessoas só fazem discursos mais nada. Não gosto de generalizar, mas às vezes ouvimos muitas besteiras. Depois que a gente tem filhos a gente reconhece mais a importância dos pais. Naquela época meu pai sustentava a família com o dinheiro da chácara. Ele vendia batatas e verduras. Nós vivíamos com esse dinheiro. Ele plantava flores também. Tinha terrenos inteiros de margaridas e copos de leite. Aquelas margaridas à noite pareciam um lençol branco muito grande. Quando a venda estava fraca ele brincava com a gente e dizia: “Puxa vida, não morreu ninguém hoje para vendermos mais flores”. Essa chácara era arrendada e minha mãe o ajudava. Ela sempre foi uma boa mãe e uma companheira sensacional. No dia do aniversário do meu pai, 27 de outubro, todo ano tinha festa lá em casa. Era a única festa do ano. Éramos em 10 irmãos, não dava para fazer festa para todos, então minha mãe fazia só nesta data.

Dia de circo

A nossa diversão era o circo. Tinha um circo no cruzamento da Alfonso Bovero com a Rua Cotoxó, e outro na Miranda de Azevedo. Todo sábado e domingo tinha espetáculo. Era pertinho da minha casa. Quando não tínhamos dinheiro para o circo, fazíamos buquês de margaridas, igual ao meu pai, enfeitava com melindro e ia vender. Tinha as freguesas certas. Assim arrumávamos dinheiro para o circo, para comprar balas e refrescos. Isso foi muito educativo, nem todas as crianças têm essa chance. Comecei aprendendo matemática dessa forma, fazendo contas na venda das flores. Hoje São Paulo é diferente. Não tem mais circo. As ruas têm pouca vegetação, muito prédio, poucas áreas com lazer de rua. Essas reuniões que o pessoal trata do meio ambiente, sempre me incomodam. Todos ficam preocupados com o Amazonas. E aqui? Quem toma conta do nosso espaço enquanto a gente toma conta do Amazonas? Eu não defendo a poluição, mas às vezes o pobre polui o rio porque ele não tem onde jogar o lixo. Derrubam as casas, constroem prédios quase grudados, janela com janela. Quem faz os prédios deveria pensar melhor. Antigamente você não podia construir qualquer coisa. Hoje tudo vale. Não se respeita mais nada. Constroem-se qualquer coisa em qualquer lugar. Tem pessoas que não dá conta nem da própria vida, do próprio espaço e quer cuidar do espaço do outro. Sobre isso eu tenho uma historinha antiga muito interessante que eu considero uma lição de vida.

“Um casal de velhos resolveu mudar e foram morar numa casinha no interior de São Paulo. Todos os dias a velhinha olhava pela janela e comentava:” Nossa! Aquele casal da casa em frente à nossa nunca lavou a cortina “. Fazia a mesma crítica todos os dias:” Como eles são porquinhos, que cortina mais suja “. Passou um certo tempo e ela sempre com o mesmo comentário. Certo dia ela diz: Puxa meu velho, até que enfim eles criaram vergonha e lavaram a cortina”. E o velho respondeu: “Não minha velha, eu é que lavei a nossa vidraça”.

A eterna aprendiz

Eu estudei na Escola Estadual Anglo Brasileiro. Perto do Sumarezinho. Quando a chácara do meu pai foi desapropriada ele perdeu muita coisa. Ficou lá vinte anos. Ele nem ligou. Poderia ter pedido um lote na época da desapropriação, eles teriam dado. Todos ganharam, menos ele porque não exigiu seus direitos. Após alguns anos eu e meu irmão compramos um lote nesse lugar e construímos um sobrado. Quando saiu da chácara, meu pai conseguiu um emprego na Singer, que ficava na Libero Badaró. Quando eu tinha 13 anos fui trabalhar numa casa de família. Como o marido da minha patroa era gerente da Singer ela me deu um curso de corte e costura de graça. Eu só tinha feito o primário e com 13 anos eu já costurava para a família toda. Uma época fui trabalhar com minha irmã, depois com meu primo numa alfaiataria e depois com uma modista. Aprendi um pouco de tudo. Aprendendo quando é criança tudo é mais fácil. Depois que me casei continuei costurando para fora.Trabalhei numa oficina de roupas prontas. A roupa já vinha cortada, fazia até 10 vestidos por dia.

O amor

Conheci meu marido, o José Augusto, num baile de carnaval, eu tinha 17 anos, e ele 22. Ele tinha uma namorada. Eu não. Ele foi meu primeiro namorado. Eu gostava muito de bailinhos e dançava bastante. Conhecia ele, mas não pensava em namoro. Achava ele mais velho. Meu pai levava a gente nos baile do clube ”Mundo Novo”. O irmão de minha cunhada era desse clube e um dia ele me falou de um amigo que sempre mandava lembranças para mim. Uma tarde, o Augusto passou por mim e me olhou. Eu pensei: “Deus queira que seja esse o amigo”. E era! Em fevereiro de 35, indo à missa, eu o encontrei. Ele parou e veio falar comigo. Começamos a namorar no dia 10 de janeiro de 1954 e em outubro de 1955 nós casamos. Morei com minha sogra durante 3 anos. Compramos um terreno no Sumarezinho e construímos dois sobrados. Naquela época os loteamentos demoravam em serem vendidos. Mais tarde fizemos uma troca com minha irmã. Ela tinha uma casa térrea e eu troquei com o sobrado.

Novos Horizontes

Minhas crianças eram pequenas ainda, mas a gente se virava. Nessa época eu fui trabalhar como servente num grupo escolar. Era perto da minha casa. Nas férias eu levava meus filhos junto. Muitas vezes, punha as crianças da rua também para dentro da escola. Essas crianças da rua me respeitavam. Só aprontavam durante as aulas, durante a semana. Aos domingos eles gostavam de me ajudar. Certa vez apareceu uns professores da PUC para fazerem estágios na capela perto de casa. Fiquei sabendo que essas professoras davam curso de “madureza” ginasial (hoje se chama supletivo), na igreja Nossa Senhora Aparecida. Essa igreja existe até hoje. Meu marido, meus filhos, meus cunhados, todos ajudaram a construir a capelinha. Isso foi em 1975 e eu já tinha 40 anos.

Eu e uma amiga resolvemos fazer o curso, mas ele já havia começado. Até tentei outros cursos, mas eram à noite e no centro da cidade. Eu trabalhava na escola até as 17 horas e precisava cuidar da casa. Pedimos para ficar como ouvintes e prometendo fazer o curso no ano seguinte e fomos aceitas. Perguntaram se fazia muito tempo que a gente não estudava. Respondemos que sim. Não estudávamos formalmente, porque ajudava os filhos na escola e estávamos sempre em contato com livros e pesquisas. Tirávamos boas notas nos simulados, éramos muito esforçadas. Estudávamos muito.Tínhamos muita vontade de aprender. Eu aprendi matemática tão bem que até hoje eu sei fazer frações. Na verdade, comecei a aprender matemática muito cedo, com a venda de verduras e flores na chácara. Como eu e minha amiga acertávamos todas as questões, eles resolveram que nós iríamos prestar os exames para receber o certificado de conclusão do ginásio. Nessa época a igreja tinha pouco espaço por causa do catecismo. Eu cedi o espaço da garagem da minha casa, e o curso continuou lá durante um tempo. Era aberto para a comunidade. Eu era boa de matemática, de geografia, não gostava muito de história. Os exames eram feitos nos colégios, por disciplinas e logo no primeiro exame eliminei 4 disciplinas.

Continuei trabalhando como servente enquanto estudava. Enquanto nós varríamos as classes na escola, minha amiga falava sobre Napoleão Bonaparte e eu comecei a me interessar por História. Os nossos professores de madureza eram ótimos. Quando o professor é bom, é entusiasta, a gente aprende. Ele ensina o gosto pelo aprender. Quando nós acertávamos eles ficavam contentes, incentivavam a gente. Dona Ilde, da PUC, era nossa professora de Geografia. Certa vez ela fez uma excursão no sítio dela e foi muito bom. Logo eliminamos todas disciplinas e ganhamos o certificado do ginásio. Não aprendi tudo nos livros, não li uma porção de livros. Aprendi com a vida, vivendo.

Outro dia eu li uma frase que dizia: “Quem lê sabe muito, mas quem observa sabe mais“. Eu concordo com isso. Aprendi muito observando as pessoas. Em 1975 teve um concurso para Agente Administrativo no Ministério da Fazenda. Esse concurso era do Ministério da Fazenda, mas os aprovados foram cedidos para o Ministério da Previdência Social porque eles precisavam de funcionários. As professoras me incentivaram e minha amiga da escola, para prestar o concurso. Orientaram a gente que talvez esse fosse o último concurso que só precisava do ginásio. Tudo que eu tinha aprendido me valeu para fazer a prova. Eu me saí muito bem nas provas. Foi passando o tempo, mas não vinha o resultado. Eu até esqueci do exame. Um dia eu resolvi procurar. Liguei para o Ministério, perguntei sobre o concurso e informaram que o resultado sairia na semana seguinte. Quase perco esse concurso. Fiquei entre as primeiras colocadas e pude escolher um lugar próximo da minha casa. Fui trabalhar no setor de informação do INPS, atendimento ao público. Eu não sabia nada de INPS e então fiz um treinamento de como atender o segurado. Aprendi muito de psicologia.

As pessoas chegam tensas e a gente tem que atender bem, ajudar a resolver seus problemas e encaminhar para o setor certo. Aprendi muito lá dentro. Eles vêm desesperados, não tem documentação certa, não sabem quais são seus direitos. Apareciam pessoas que tinham direito à pensão do filho falecido e não sabiam. Eu localizava o processo, ajudava em todas as seções. E com isso eu aprendi um pouco de tudo. Era muito gratificante poder ajudar as pessoas. Se você tem todos os documentos vai atrás e faz sozinho, não precisa nem de advogado. A não ser um caso muito complicado. Eu fiquei no Ministério da Previdência Social 16 anos. Em 1991 me aposentei.

A aposentadoria

Depois que me aposentei, me chamaram novamente para trabalhar na superintendência e fiquei lá mais três anos para ajudar nos processos. Chamaram-me novamente, mas eu não fui. Era longe da minha casa, tinha que sair muito cedo, e chegar muito tarde. Meus filhos já estavam casados quando eu me aposentei. É muito bom trabalhar e chegar a uma aposentadoria. É pena que o salário fica muito defasado, e a gente tem que fazer milagre com o dinheiro. A aposentadoria é um momento que deveríamos ter um pouco mais de conforto, usufruir um pouco mais a vida. Nessa época necessitamos de mais atendimento médico, se gasta mais com a saúde. É bom se aposentar. Mas também não pode parar de tudo e não fazer mais nada. Tem pessoas que tem tendências a depressão, principalmente quando ficam muito dentro de casa. Quando ficamos muito paradas, em casa, ficamos muito exigentes. É arrumação de armários, de gavetas e não se faz outras coisas. Eu não queria isso. Tinha saúde e vontade de ser útil. Não podemos ficar em casa, muito disponível para todo mundo. Até velório que não precisa você acaba indo e não sobra tempo para você. Trabalhando fora o tempo rende mais. A gente se organiza melhor. Eu fico pouco em casa porque tenho muitas atividades.

Participo do fórum da Terceira Idade de Pinheiros. Participo com minhas idéias. Se eles me acatam não sei. Tem coisas que eu não concordo e falo mesmo. A questão de espaço é uma delas. Não temos que reivindicar mais espaço para os idosos. Tem espaço de sobra, o que falta é infra-estrutura. É preciso transporte adequado para quem não pode se locomover. Tem um monte de atividades para idosos, mas só para quem pode pegar condução ou ir de carro. Não são todos que podem fazer isso, aliás, é uma minoria.

D. Olga numa tarde de autógrafos

A Faculdade da Terceira Idade – o encontro com a poesia

Posso me considerar privilegiada. Comecei a trabalhar cedo, aliás, ainda criança, mas talvez por isso, aprendi a planejar minha vida. Consegui criar meus filhos e trabalhar fora ao mesmo tempo até me aposentar. A correria era tanta, que depois de aposentada, filhos casados, eu tive a sensação de já tinha vivido tudo. Pensei: ”Vou ficar quietinha em meu canto e esperar a morte chegar”. Mas como sempre temos anjos chegando, cada um a seu tempo, comecei procurar alguma coisa para me distrair: filmes, palestras, etc. Confesso que não acreditava muito, pois o assunto era sempre negativo, mostrando-nos que o nosso mundo era doenças, solidão, abandono. Não aceitei. Desde que nascemos estamos mudando. Na velhice não pode ser diferente. Comecei a procurar coisas novas e foi assim que comecei a ler sobre grupos de terceira idade e aos poucos fui descobrindo o que era melhor mim. Não lembro se foi no ano de 1999 ou 2000. Acho que foi 2000. Uma amiga me sugeriu fazer a Faculdade da Terceira Idade. Eu pensei bem e disse: acho que vou fazer mesmo. Fui fazer a Faculdade da Terceira Idade no Campos Salles. Foi maravilhoso. Tive ótimos professores. Fiz o curso em 3 anos. Freqüentava as aulas duas vezes por semana. Os professores sabem lidar muito bem com os idosos. Eles incentivam, vibram com o aprendizado da gente. A gente se sente valorizado, respeitado. Eu estudava português, matemática, e história. Comecei a criar gosto pela historia do Brasil. O professor tinha um jeito especial de ensinar. Quando tinha algum trabalho para fazer eles ajudavam a gente. Não era uma cobrança excessiva. Eu sempre fazia todos os trabalhos e entregava para os professores corrigir. Tivemos uma revisão do curso primário, recordamos regras gramaticais e outros assuntos de português.

Escrevíamos crônicas e daí veio minha vontade de começar a escrever poesias. Aprendi a não usar a palavra nunca. É só ter vontade e dedicação que você consegue. O emprego de servente na escola também me ensinou muitas coisas. Uma delas é que quando você cumpre sua obrigação, faz tudo correto, as pessoas podem falar o que quiserem; você sempre tem justificativa para se defender. Vou contar outra historinha para você ver como são as coisas.

“Uma vez o diretor da escola onde eu era servente, mandou me chamar e disse que as mães estavam reclamando que nós deixávamos os meninos entrarem no banheiro das meninas e eles puxavam as saias delas”. Essa era a versão das mães. O que acontecia na verdade, era que as meninas (mais “danadinhas“ que os meninos) provocam eles e corriam. Eles corriam atrás delas e elas iam para o banheiro das meninas para se proteger. Era o território que eles não entravam. Quando alcançavam elas próximas à porta, agarravam-nas pela saia para impedir que entrassem no banheiro. Era uma história sem malícia, bem diferente do que as mães pensavam. Eu sempre estava atenta a tudo. E pude explicar para a diretora e para as mães.”“.

Quando terminei o curso da Terceira Idade não queria ir embora da faculdade e resolvi fazer um curso de Literatura. Tive uma professora que me incentivou muito. Ela se chamava Estela. Jamais vou me esquecer dela. Ela escrevia uma palavra na lousa e pedia que escrevêssemos outras com significados parecidos. Eu conseguia escrever 10 ou mais palavras. Depois, pedia que fizéssemos uma estrofe com alguma daquelas palavras. Eu tinha certa facilidade para escrever. Depois de pronto lia e gostava. Um dia ela me deu duas palavras: Ipê e Estrada. E eu escrevi esta poesia:·

“Nas estradas quando viajo,

por trás da cerca farpada,

avisto um pé de ipê,

não sei se é miragem,

Não perca nenhuma notícia!

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só sei que vejo você

E com muita cautela,

atravesso a cerca farpada

descanso na sombra do ipê,

caminhando, encontro outra cerca

não sei se é miragem,

só sei que vejo você

Não é só quando viajo

e nem a cerca farpada

tão pouco o pé de ipê,

e também não é miragem,

meus olhos só vêem você”.

Só envelhece quem está vivo

As pessoas falam que gostariam de voltar no tempo. Eu não, para mim está bom assim. Estou muito bem. Não quero voltar não. O envelhecimento é diferente para cada um. Eu e o meu marido nos damos bem do nosso jeito. Estamos sempre brigando; envelhecendo juntos e dividindo o serviço da casa. Ele lava a louça enquanto cuido de outros afazeres domésticos. Eu saio mais do que ele. Ele não pode me acompanhar em tudo que faço. Eu tenho minhas atividades. Quando pode ele me acompanha. Quando o Corintians não joga. Gostaria de ter mais tempo para escrever. Mas não é sempre que dá.

Papel de bala – o preconceito

Tem gente que faz projeto e depois que ganha a eleição não faz mais nada. Eu acho que não tem que prometer nada. Tem que oferecer o que pode. Não adianta juntar um monte de velhinhos e fazer discurso. É uma humilhação. Quando eu participo das Palestras da Terceira Idade eu falo mesmo. Muita gente diz que é necessário mais respeito com os velhos. E será que eles respeitam? Existe muito preconceito. Com os idosos ainda. Eu fiz uma poesia onde eu digo isso.

Chama-se: papel de bala.

“Se alguém abrir minha bolsa

vai logo rir e pensar

a idade vai chegando

olha o que ela quer guardar

Mal sabem as pessoas

da minha indignação

Quando eu vejo alguém

jogando lixo no chão”.

Estar só é diferente de solidão

Tem gente que sente solidão, que não gosta de ficar só. Eu não sinto. Só tem solidão quem não tem fé, não acredita em nada. Não é a companhia que te faz sentir acompanhado. Pode-se sentir solidão junto com alguém. Tem momentos que é bom ficar só. Às vezes nem conversa é bom. Quando eu fico sozinha eu escrevo, eu penso, eu sonho, eu converso com Deus. Eu tenho meu jeito de viver. Acho que vivo bem assim.

A espiritualidade e o saber viver

Eu sou católica e não mudo de religião. Antes de sair de casa faço minhas orações, rezo e peço muita proteção. Eu não faço tudo o que a igreja manda, mas procuro trabalhar com o bom senso. As igrejas ajudam bastante. Eles fornecem cestas básicas, assistentes sociais, dentistas e médicos. Arrumam parcerias nos hospitais para quem precisa de fisioterapia. Eu já usei esses serviços. São estudantes. Melhorei só pelo prazer de lidar com aqueles alunos que estão aprendendo e tratam a gente muito bem. Eu cuido da minha saúde. Tomo remédio pra a pressão e faço reposição hormonal. Você tem que ajudar os médicos, colaborar no tratamento. Hoje eu ando um pouco esquecida. Faço exercícios físicos porque eu sei que faz bem para a saúde. Quando dá tempo eu caminho meia hora por dia. Não tenho empregada, cuido da casa, faço comida, e quando dá tempo ainda costuro um pouco. Vou à natação duas vezes por semana. Tem um horário só para idosos Tem muita gente boa lá. Eu faço fonoaudiologia para melhorar a voz, quero continuar lendo minhas poesias. Eu penso que primeiro temos que cuidar da nossa saúde para depois cuidar do outro. O otimismo ajuda também. Se eu estiver doente e chegar alguém aqui e ficar triste com a minha doença eu vou ficar pior ainda.

Minha mãe com 90 anos, via a gente nervosa e falava. “Tem gente doente aqui? Então para que esse nervosismo todo. Tem jeito para tudo”. Eu aprendi muito com ela. Ela viveu até 95 anos. Na última semana de vida ela já estava na cama, mas quando a gente chegava os olhos dela brilhavam de alegria. Isso a gente tem que observar muito bem nas pessoas para aprender.

Minha sogra não sabia nem ler nem escrever, teve uma vida simples e tranqüila Sempre soube conversar e resolver seus problemas, comprava só o que podia. É muito desagradável quando você vai assistir uma palestra e eles só falam de doenças e de alimentação. Não é porque está aposentado que é doente. Tem que falar de coisas boas também. Eu sigo meu corpo. Quando estou cansada eu descanso um pouquinho. Nós temos que respeitar o que o corpo pede. Se ele pede descanso, pare um pouquinho e descanse. Eu quero é viver bem. Viver bem não é só ter dinheiro, é ter cabeça boa. Quero morrer com a cabeça boa. Não tenho medo da morte. Minha irmã diz: já pensou se a gente está dormindo, sozinha e de repente morre? Eu digo a ela que se eu morrer dormindo, dentro da minha casa, é um presente. Eu não tenho medo da morte, mas também não tenho pressa! Eu queria ter uma morte assim. Talvez o medo seja de ficar doente. A morte é melhor do que ficar inválido dependendo dos outros. É difícil envelhecer doente. Tem gente que diz que idoso é como criança. Não é não. Criança você pega no colo, é mais fácil. Idoso não é muito difícil de cuidar.

D. Olga foi muito gentil em conceder-me as preciosas horas de seu domingo para me contar sua história. Até cancelou compromissos para “esticarmos” nossa conversa. Terminada a entrevista, tomamos um gostoso café com leite, bolo e biscoitos. O Sr. José Augusto, gentilmente deixou seu futebol por algum instante e fez companhia para nós. Ainda fiquei por um bom tempo conversando com D. Olga e, junto dela, saboreando seus livros de poesias. Perguntei se ela gostou de falar sobre sua vida e ela me respondeu:

“Eu gostei de falar porque você me ouviu. Não é todo mundo que me ouve. E não é todo mundo que me entende. Você me entendeu.”

Livros publicados pela autora

FIGUEIREDO, Olga.Entardeceres/Poesias. São Paulo, Meireles Editorial, 2000

Poetas da Mario de Andrade[1], Coletânea II (editor Harley Meireles). São Paulo, Meireles Editorial, 2003

Poetas da Mario de Andrade, Coletânea III (editor Harley Meireles). São Paulo Meireles Editorial, 2004

Poetas da Mario de Andrade, Novos Poetas, Coletânea VI (editor Harley Meireles). São Paulo, Meireles Editorial, 2004

FIGUEIREDO, Olga. Simples Poesias. São Paulo, Meireles Editorial, 2000

*[1] Biblioteca Mário de Andrade

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