Pôr da Lua

Ah! Você nunca viu ninguém falar sobre “pôr-da-lua”? Nem eu. Os poetas falam muito sobre o pôr-do-soL “Mas eu fico triste como um pôr-do-sol”, escreveu Alberto Caeiro. E Wordsworth, nos seus versos famosos: «As nuvens que se juntam ao redor do sol que se põe/ ganham suas cores solenes/ de olhos que têm atentamente/ montado guarda sobre a mortalidade humana”. E Browning: “Quando nos sentimos mais seguros, então acontece algo: um pôr-do-soL E outra vez estamos perdidos». E Bachelar: A vela que se apaga é um sol que morre. A vela morre mesmo mais suavemente que o astro celeste””.

Rubem Alves *

 

Os pores-do-sol nos comovem porque somos seres diurnos. O pôr-do-sol é o fim do dia. Metáfora do fim da vida. Daí a sua tristeza. E se fôssemos seres noturnos, aves para as quais o pôr-do-sol não é o fim, mas o inicio início da noite? Então o sol poente anunciaria a madrugada da noite, o nascer do viver.

Põe-se o sol; nasce a lua. Com a lua nascente, para os seres noturnos, começa o tempo da vida, o tempo do amor. O cri-cri dos grilos, o coaxar dos sapos, o pio das corujas, o piscar dos vaga-lumes e o vôo frenético das mariposas. Pulsações de uma vida que desperta quando a noite cai e a lua nasce. Então, para os seres noturnos, um pôr-da-lua deve ter a mesma beleza triste que tem um pôr-do-sol para os seres diurnos.

Entre nós, humanos, não haverá seres noturnos? Indo um pouco mais fundo: não haverá em todos nós um ser noturno que aparece quando o ser diurno vai dormir? O sol desperta em nós o ser que pensa, age e trabalha. A rua desperta o ser que sonha, contempla e ama. Fala a Cecília sobre a lua que envolve os noivos abraçados. Ah! Como o verso ficaria ridículo se, em vez de lua, ela dissesse sol! A luz da lua desperta em nós o ser tranqüilo. Parodiando Bachelard: «Quer ficar tranqüilo? Contemple a lua que faz mansamente o seu trabalho de luz”. Há recantos da alma que só acordam sob a luz branca e fria da lua. Ouça os “Noturnos”, de Chopin, e sua nostálgica beleza. Como o seu nome diz, foi no silêncio da noite que Chopin os ouviu. E o “Clair de Lune”, de Debussy?

A psicanálise é um ser noturno. Ela só acorda quando o sol se põe e a noite desce. Ela só vê bem na escuridão. A luz do sol a ofusca. Por isso, durante o dia, ela fica em silêncio, deixando que outros falem. Descendo a noite, entretanto, os homens se põem a sonhar e a amar. É ai, em meio ao sonhar e ao amar, que a psicanálise acorda e se põe a cantar o seu canto manso de coruja de Minerva. Brilham luzes suaves na noite escura do inconsciente: estrelas, vaga-lumes, meteoros e luas, muitas luas… Quando essas luzes brilham, acordam os artistas, os poetas, os místicos e os intérpretes de sonhos. Estou triste porque contemplei um pôr-da-lua: Judith Andreucci era uma lua no mundo da psicanálise. Ela mergulhou no horizonte. Não mais veremos o seu brilho suave. Quem era ela?

Era uma maga de voz mansa e rosto tranqüilo. Se estranham que eu a chame de maga, digo que foi o próprio Freud que reconheceu o parentesco entre a magia e a psicanálise (como Guimarães Rosa viu o parentesco entre a magia e a poesia).A psicanálise é um exercício de poesia. Não admira que Freud tenha encontrado iluminação para a sua arte não na ciência, mas na literatura. Somos literatura. Cada pessoa é um poema encarnado. Aprendemos psicanálise lendo-nos ruminantemente. Somos textos da literatura e da poesia do corpo. A nossa infelicidade —neurose, se quiserem— se deve ao fato de que nos esquecemos do poema que está em nós inscrito.

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O psicanalista é o intérprete do poema estrangulado. Intérprete não no seu sentido comum, de alguém que diz em linguagem diurna o que o corpo diz em linguagem noturna. Essa é interpretação, necessária quando se trata de esclarecer obscuridades diurnas, de inspiração cartesiana, filosófica. Mas há um outro sentido para a palavra “interpretação”, que nos vem da música. O pianista lê a partitura silenciosa, deixa-se ser possuído por ela e, possuído, ele a “interpreta” ao piano: realiza-a como música, tornando sensível a beleza.

Pois nós somos partituras que nós mesmos não sabemos interpretar. O ofício do psicanalista é o oficio do artista: ele lê a partitura misteriosa que nós mesmos não entendemos e interpreta-a para que, ouvindo a nossa própria beleza, sejamos por ela libertados.

Judith Andreucci era psicanalista. Era uma intérprete, no sentido musical. Lembro-me bem da sessão em que conversamos sobre um sonho que tive: eu tocava o prelúdio 22, do primeiro volume do “Cravo Bem Temperado”. Mas o tocava de uma forma estranha, com as mãos cruzadas, enquanto dizia: “Esse prelúdio é muito organístico”.

A psicanálise (como a religião) tem uma vertente, a meu ver, sinistra, identificada por Bachelard de forma humorística: “O psicanalista é alguém que, diante de uma flor, logo pergunta: ‘Mas o estrume, onde está?”’. A doutora Juju — era assim que a chamávamos na intimidade— procedia ao inverso. Vendo estrume, perguntava: “E a flor, onde está?”. Ela se permitia ser levada pelo humor e pela beleza. Ela se deleitava com a minha música. Lembro-me que, relatando-lhe as coisas incríveis que aconteciam no sobradão colonial do meu avô, onde passei boa parte da minha vida, ela dizia com espanto e deslumbramento:

«Mas doutor, isso é mais fascinante que ‘Cem Anos de Solidão”’. Foi ela que me encorajou a explorar o inconsciente belo e equilibrado que é o nosso destino.

No seu consultório, havia uma gravura que me impressionou e da qual não me esqueço. Era um enorme bloco de gelo, transparente, um iceberg flutuando no mar e, dentro dele, uma figura humana congelada. Haverá metáfora mais forte para a condição humana?

A lua se pôs. Mas a sua luz, onde tocou, ficou…
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* Rubem Alves – psicanalista, escritor e professor emérito da Unicamp, é autor de “O Amor que Acende a Lua” e “Concerto para Corpo e Alma”, entre outros. Disponível Aqui

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