O Blog Poética da Velhice, de Cristiane Pomeranz, transformou-se em livro que oferece 32 atividades para se trabalhar a arte e o afeto com pessoas idosas.
Cremilda Medina (*)
Conheci Cristiane Pomeranz na oficina que ofereço ao Programa da Terceira Idade da Universidade de São Paulo. De imediato percebi o brilho nos olhos e o gesto solidário na atitude de uma parceira, ainda não idosa, especialista em Gerontologia. Também de pronto constatei nossas confluências na abordagem prática com que encaramos o Ato Presencial na Educação. Nem ela nem eu nos dedicamos à esfera discursiva e conceitual dos temas propostos a participantes de todas as idades. Com mútuo interesse, pudemos trocar experiências: Cristiane junto aos grupos envelhecidos e carentes de atenção; eu junto a universitários de diversas faixas etárias, interessadas em exercer a autoria das Narrativas da Contemporaneidade. Comungamos os mesmos desafios do laboratório de motivações.
CONFIRA TAMBÉM:
O livro que a autora agora oferece a sua mãe, em homenagem aos seus 80 anos, traz consigo outra marca que nos é comum – a disponibilidade de estarmos afetos uns aos outros. Cristiane, ao vivo, Cristiane, no texto, transborda a emoção solidária que distribui à sua volta. A começar pela mãe, pelo pai, avós e bisavós, filhos, próximos de toda a natureza (cachorrinhos em particular). Não é de estranhar que, profissionalmente, mergulhe até mesmo na crueldade da demência e aí consiga criar pontes de comunicação. A propósito, diz com transparência dilacerada: “Hoje não só tolero como transformo o olhar para o sofrimento causado por esse tipo de ausência. A morte é natural; a demência, cruel”.
Se muito aprendeu com a Bis do Mar (bisavó que morou grande parte de sua vida em Santos), essa talvez tenha sido a lição essencial, ultrapassar as fronteiras fechadas pelos males de certas velhices. Então lembra a poesia que a bisa (italiana) declamava e nela, a borboleta, personagem central, se solta para a liberdade. Já de saída, a pesquisadora da Gerontologia intui a estratégia da borboleta para transcender no que eu nomeio em minhas oficinas universitárias (graduação, pós e terceira idade) de Gesto da Arte. Cristiane invoca Nietzsche no prólogo: “Temos a Arte para não morrer de verdade”. Também para mim, perante as agruras do cotidiano, a História que nos atormenta, o caminho que somente o sapiens nos legou, é a poética da narrativa, asas com que alçamos voo para imaginar a narrativa de outra História. O contato com a velhice e a exposição à Arte, acoplados, mostram para a autora que é possível voar cada vez mais alto enquanto envelhece e envelhecemos. Cristiane e suas borboletas.
Sim, reconhece, “amanhã serei velha”. Para ela é natural amarrar um laço no tempo da memória, do presente e do futuro. A capacidade de se fundir em qualquer um desses momentos lhe dá energia para praticar a Arte de Tecer Afetos. E este livro nos traz o testemunho consciente, amadurecido no convívio, de que é possível se transpor para outras paisagens humanas, esculpir os próprios sonhos no sonhar coletivo. O projeto se realiza na experiência dos sentidos e nada mais fecundo do que se valer das artes plásticas, da música, da literatura, da fotografia e de todas as expressões artísticas para soltar as asas libertárias do voo. Assim, na sintonia profunda com idosos de horizonte aparentemente contido, Cristiane distribui gestos abertos da arte, gestos de bravura irreverente, de estética não comportada, aquela que, ao contrário do que julgam os de sensibilidade atrofiada, não distorce a realidade, mas navega no delírio metafórico.
Por sua vez, os textos criativos da autora se sucedem também no ritmo delirante do pensar libertário e do sentir permeado de sutilezas colhidas nas vivências comuns. (Comuns a todos nós e comuns porque não extraordinárias.) Só tal dose de poética já seria bálsamo para quem morre todos os dias de ver todas as injustiças do mundo. Ou aqueles dias em que a gente se sente como quem partiu ou morreu. Mas a filósofa ou a poeta não se entrega à explanação discursiva nas crônicas que escreve. Além do pensar e do sentir, intimistas por natureza, o texto aflora a urgência da ação solidária. Sem a tríplice entrega, digo eu, não acontece o Signo da Relação. E na ação interativa, Cristiane mobiliza todos os sentidos, como, por exemplo, o olfato. “O cheiro amoroso nos envolveu”, descobre ao narrar “O perfume de dona Helena”. A interação social criadora se consuma no “existir socialmente”. E lá vai a autora ao fundo do poço para voltar à tona: “Afinal, o Alzheimer é grande, mas a vida e o viver são ainda maiores”.
A generosa ação da arte-educadora não se limita, pois, ao testemunhal, uma vez que a cada crônica a autora apõe uma sugestão prática para aqueles que se lançarem ao diálogo com a velhice. Socializa cada passo do que aprende e registra complementos às crônicas que não se confundem com fichas técnicas, pois Cristiane não prega sermões, mas confessa, no diário de campo, seus espantos, reticências, encantamentos.
Há a constante da partilha com o leitor, seja na invocação da Arte, nas travessias de tempos e espaços, nos cruzamentos intergeracionais que compõem as partes do livro. Os textos deslizam numa prazerosa leitura, porque nos convidam a comparecer às cenas esparsas no tempo ou no espaço, costuradas pela narrativa animada e não pelo conceito abstrato. E o fio da tessitura prossegue impregnado de amor, jogando o ódio no lixo. Não há uma receita rígida para esse artesanato solidário; o imaginário coletivo se solta sem dogmas de cartilha. E a menina-mulher, jovem-velha anuncia: “Próximo domingo vou promover a mistura desordenada como regra”.
Também os códigos se desalinham: ora a escrita linguística pede licença para se impor em primeiro plano; ora as imagens iconográficas abrem a cortina para o palco das palavras. Quem quiser que escolha seus significados nas incoerências da vida e da morte. Tanto Nina, a cachorrinha, como a Bis do Mar, a querida bisavó, alevantam suas vozes ao mesmo tempo no caos dos sons cotidianos e o leitor do livro de Cristiane Pomeranz agarrará seu particular balão para desenhar no ar a narrativa das finitudes aladas no infinito da memória humana.
(*)Cremilda Medina -jornalista, pesquisadora e professora sênior da Universidade de São Paulo, é autora de 20 livros e organizadora de mais 55 coletâneas. Entre estas, já coordenou publicações com autores da terceira idade, como . E entre as obras que escreveu, A arte de tecer o presente, narrativa e cotidiano (São Paulo, Summus Editorial, 2003) reúne reportagens e ensaios reflexivos que ilustram a proposta pedagógica de suas oficinas na USP e em outras universidades.
Neste livro, Cristiane Pomeranz propõe 32 atividades para trabalharmos com idosos, simples e eficazes, que permitem altos voos aos participantes. Ela o escreveu como um presente para sua mãe, em homenagem aos seus 80 anos, mas podemos considerá-lo um presente para todos nós, especialmente para quem trabalha com idosos ou tem parentes com alguma dificuldade cognitiva. Cada crônica, além de propor uma atividade prática, tem uma ilustração na forma de desenho que pode ser pintada.
Adquira o livro aqui.