De um jeito ou de outro vou rebolar, afinal é carnaval e precisamos estar alegres. Serei então uma velha folgazã que sai pela avenida carregando todo viver bem construído, com os afetos cultivados e os amores jamais esquecidos.
Decidido. Neste carnaval vou cair na folia e me fantasiar de velha, colocarei mais brancos nos cabelos e darei um jeito de enrugar ainda mais a minha pele. Na avenida, ou nos bloquinhos pretendo sambar o tanto que aguentar, afinal, os velhos neste país são obrigados a rebolar tamanho descaso por eles e eu, velha, sambarei com facilidade. Se ficar parada e não reagir, facilmente os sonhos serão pisoteados.
É Carnaval e eu serei velha. Todos os meus desejos e saudades cantarei em versos e na avenida vou poder, nesses dias, ser a velha que quero ser, ou serei a que o destino quer que eu seja? Medo, muito medo do destino, mas neste carnaval tudo o que amedronta será trocado por uma confiança no divino e na fé que nos faz otimistas demais.
Preciso de uma vez mostrar o que aprendo com os velhos no meu dia a dia e eles me ensinam que a fé conforta e sossega os corações aflitos.
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Na real, como dizem por aí os mais jovens, sou uma quase velha e já deveria ter aprendido algo sobre os corações agoniados que adoecem e destroem vidas, mesmo na calmaria.
Sei que no início rebolarei com dificuldade, afinal tem sido assim desde que a idade avançou e prejudicou o motor de arranque que havia no meu corpo fazendo com que eu me levante dos lugares como um robô sem lubrificação nas juntas, mas vou rebolar. De um jeito ou de outro vou rebolar, afinal é carnaval e precisamos estar alegres. Serei então uma velha folgazã que sai pela avenida carregando todo viver bem construído, com os afetos cultivados e os amores jamais esquecidos.
Da janela avisto alguns foliões já perdidos pelo bairro gritando que o carnaval vai começar.
Misturam-se aos gritos e buzinas os latidos das minhas cachorras que não entendem a confusão e que, certamente, ao me vestir de velha, não deixarão de olhar apaixonadamente para minha velhice exibida na passarela. A evolução pertence aos animais, alguma dúvida? Capazes de entender o tempo como uma condição e não como algo capaz de diminuir ou oprimir existências.
Velhice na passarela, nos nossos dias e sob nossos olhares. Chamarei Idelma, velha boa de samba, para ir comigo e juntas dançaremos a vida e a possibilidade de existir e sambar ao som das músicas e não pelo estrondo do descaso de ser velha.

Serei uma velha assanhada que reage às provocações da vida sambando. E vou sambar, eu e a Idelma, de mãos dadas e coração aberto pelas ruas do bairro, pelas avenidas da cidade cantando pela vida afora.
Neste carnaval quero ser velha, mas velhice dá trabalho, pede força e coragem. Ser velha não é coisa pouca não.
Talvez seja melhor ver do sofá, da janela, do celular. Vou esperar o carnaval passar e deixarei então a fantasia guardada à espera de tempos futuros. Em breve, irei vesti-la com propriedade, força e coragem.
Por hora, melhor descansar um pouco. Logo mais, vou me vestir de velha.
Da janela os foliões, que já são muitos, espalham o som do batuque que se mistura ao latido das minhas cachorras que parecem não aprovar o carnaval.
Sem pressa, sairei para sambar pelas ruas do bairro pelas avenidas da cidade. Em outros tantos carnavais, com a fantasia que usarei todos os dias.
Fecho a janela, a frente fria anunciada chegou e no conforto do lar e no amor da família e das cachorras me fortaleço para o futuro breve onde a velhice será a vestimenta.
Os foliões se afastam em direção à avenida. Amanhã caio no samba.

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