A população de rua enfrenta dificuldades de acesso a bens e serviços, o que pode resultar em subnotificações.
Por Camilla Martins Albuquerque, Matheus de Oliveira Barros e Ludimila de Oliveira Barros (*)
Enquanto aguardávamos o Sr. Renildo*, 68 anos, pessoa em situação de rua, para uma entrevista de pesquisa, nos envolvíamos no ato quase universal de “surfar na internet”, um termo popular do início deste século que designa pesquisar nas páginas da rede mundial de computadores. Hoje, nem carecemos de um computador para navegar. Como diz o poeta: “desafio o mundo sem sair de minha casa”, assim, pela tela do celular… (será?). Em meio ao volume de estímulos nervosos intensificados – parafraseando George Simmel – e à espera do nosso interlocutor, nossos dedos deslizavam pela tela repleta de imagens, símbolos e notícias. Em uma sala do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Aracaju, capital do Estado de Sergipe, no nordeste brasileiro (não nos custa lembrar), um conteúdo emergente dessa interação digital chamou nossa atenção.
Tratava-se da divulgação dos dados do Índice de Progresso Social (IPS). Quase instantaneamente, as redes sociais oficiais da gestão municipal divulgaram, em tons publicitários, o slogan “cidade da qualidade de vida”, um jargão historicamente utilizado para identificar a administração local. Termos como cidade inteligente, cidade criativa e cidade do Forró, entre outras nomenclaturas, são tentativas de posicionar a gestão municipal através da espetacularização urbana. Esse procedimento visa, em última instância, obter retornos mercadológicos, capitais imagéticos e eleitorais naquilo que alguns especialistas denominam “concorrência entre cidades”, visando a captação de fluxos de investimentos. Mas isso é uma outra conversa!
CONFIRA TAMBÉM:
Publicidade utilizada pela gestão municipal[1])
Os números do Índice de Progresso Social (IPS) destacam a posição relativamente “privilegiada” da cidade de Aracaju em comparação com outras capitais nordestinas[2]. O IPS se diferencia metodologicamente de outros índices, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), ao incorporar categorias analíticas mais diversificadas e considerar indicadores sociais específicos, além de questões de gênero e raça, entre outros fatores. Apesar do avanço investigativo proporcionado pelo IPS, houve um contraste inevitável entre a análise dos dados e a chegada do nosso interlocutor na sala.
Renildo exibe um rosto levemente abatido de quem apenas cochilou à noite, mas mantém um sorriso nos lábios. Ele carrega consigo, segundo suas próprias palavras, “muitos desencontros e agora, uma bolsa de colostomia”. Na capital nordestina conhecida pela “qualidade de vida”, Renildo se junta a outras 1.078 pessoas em situação de rua[3], ocupando as vias públicas ou abrigos especializados, incluindo muitos idosos acima de 60 anos. A ausência de um censo municipal impede uma compreensão mais precisa dessa realidade, tanto em termos quantitativos quanto na construção de um perfil demográfico. Os dados disponíveis provêm de bancos secundários, oriundos de cadastros socioassistenciais. No entanto, a população de rua enfrenta dificuldades de acesso a bens e serviços, o que pode resultar em subnotificações nos números apresentados.
CAPS AD Primavera, Aracaju, Sergipe – Arquivo pessoal
A idade avançada e a situação de rua
Quando nos deparamos com a interseção entre a idade avançada e a situação de rua, o cenário assume contornos únicos. No Brasil, houve um aumento de 40% no número de idosos em situação de rua na última década[4]. Esse panorama aponta para a urgência de desenvolvermos mais instrumentos de cuidado e políticas públicas direcionadas a esse grupo populacional, que demanda ações específicas[5]. Entre as características que definem essas experiências de vida, estão os processos patológicos decorrentes da vida nas ruas, a saúde mental e a diminuição da mobilidade corporal – fator crucial para a sobrevivência em um contexto de rua. Essas questões devem ser consideradas no processo de envelhecimento das pessoas que viveram em situação de rua. “O tempo chega para todo mundo, né meu filho, pior pra gente que dorme e acorda no papelão. Eu mesmo já estou perdendo a coragem”, nos alertou Renildo, em tom cômico, como quem brinca de esconder suas dores.
Uma das consequências diretas do processo de envelhecimento em situação de rua, conforme revelado pela pesquisa intitulada “Os sentidos do envelhecimento de pessoas idosas em situação de rua em Aracaju, SE” [6], é a intensificação da necessidade de “saída das ruas”. Embora essa narrativa/desejo faça parte dos repertórios discursivos da população de rua em diversas faixas etárias, as pessoas idosas em situação de rua apresentam necessidades específicas, indicando que as perspectivas institucionais podem fornecer cuidados paliativos de forma mais regular, os quais não são encontrados no ambiente urbano.
Apesar de contarem com políticas públicas relevantes, como o programa Consultório na Rua[7], essa parcela da população frequentemente busca espaços que ofereçam diferentes temporalidades de cuidado. “Por isso que eu não perco um dia aqui no CAPS, sigo meu PTS (Plano Terapêutico Singular) certinho, quero um lugar para ficar mais quieto, de boa!”, destaca o Sr. Renildo, ao ser questionado sobre seus planos de curto prazo.
As condições patológicas inerentes ao processo de envelhecimento, as consequências de uma vida marcada por inseguranças diversas, a dificuldade de acesso a bens e serviços, a violência urbana e, especialmente, as transformações corporais associadas à diminuição da mobilidade na cidade são fatores que empurram a pessoa idosa em situação de rua para a busca por apoio institucional como forma de contornar as dificuldades em seu processo de sobrevivência.
Assim, estar em constante movimento torna-se uma característica fundamental para a sobrevivência nessa situação. Quando relacionado ao envelhecimento, isso gera a necessidade de adaptações específicas. Dentro desse contexto adaptativo, é possível observar os desvios efetuados pela população idosa em situação de rua, especialmente no que diz respeito à busca por recursos institucionais que permitam uma relativa permanência. Isso não implica um rompimento total com o ambiente onde essas pessoas construíram vínculos, identidades e modos de vida. O processo adaptativo refere-se à ocupação de outros espaços na economia institucional da cidade, possibilitando uma estadia alternativa às temporalidades da vida nas ruas.
Não à toa, abrigos, unidades de acolhimento e espaços filantrópicos são usados como locais de trânsito, muitas vezes frustrando as expectativas institucionais de permanência definitiva ou de longo prazo. O que as pessoas idosas em situação de rua nos mostram diz respeito à necessidade de políticas públicas e espaços de cuidados que considerem a temporalidade de um corpo que agora requer cuidados específicos, mas que também é constituído pelas memórias de uma vida “fagocitadamente” urbana.
Se estamos de fato interessados em construir cidades com qualidade de vida, precisamos urgentemente repensar nossos arcabouços institucionais voltados para pessoas em situação de rua, especialmente as idosas. Considerar a mobilidade é crucial para desenvolver metodologias de cuidado que proporcionem acesso à cidadania. Enquanto isso não ocorre, ao menos para os “Renildos” de Aracaju, a cidade que vangloria pelo seu status de cidade “com qualidade de vida” permanece como mais uma promessa vazia.
Nota
Este artigo faz parte de investigação apoiada pelo Edital Acadêmico de Pesquisa Envelhecer com Futuro, promovido pelo Itaú Viver Mais e Portal do Envelhecimento. Resultados dessa pesquisa serão apresentados no I Congresso Internacional Envelhecer com Futuro – Cief (saiba mais abaixo).
Notas
*O nome em questão foi modificado para preservar a identidade do entrevistado.
[1] Para maiores informações https://cinformonline.com.br/aracaju-e-a-capital-com-a-melhor-qualidade-de-vida-do-nordeste-aponta-levantamento-inedito-do-ips/
[2] Para visualização completa dos dados acesse https://ipsbrasil.org.br/explore/scorecard/SE/2800308
[3] Dados do Observatório de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPOPRUA – UFMG)
[4] Dados do Observatório de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPOPRUA – UFMG)
[5] Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009.
[6] Os sentidos do envelhecimento de pessoas idosas em situação de rua em Aracaju SE. Fomentada pelo Itaú Viver Mais e o Portal do Envelhecimento.
[7] portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2011.
(*) Camilla Martins Albuquerque – Bacharela em Psicologia pela Universidade Tiradentes (UNIT) e Mestranda em Processos de Subjetivação e Política, pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI/UFS). Com experiência no campo da Saúde Mental (Coordenação da Rede de Atenção Psicossocial do Município de Aracaju), População em Situação de Rua e manejo clínico voltado ao uso abusivo de Álcool e outras drogas.
Matheus de Oliveira Barros – Cientista Social pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Pós-Graduado em Direitos Humanos e Contemporaneidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS – UFRB). Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Integrante do Movimento Nacional População de Rua (MNPR – Núcleo Feira de Santana – BA e Aracaju – SE). Ganhador do Prêmio Troféu Maria Lúcia pelos serviços prestados à população em situação de rua.
Ludimila de Oliveira Barros – Licenciada em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e Mestre em Educação, Sociedade e Contemporaneidade, pelo programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UEFS).
Foto de Mart Production/pexels.
Serviço
I CONGRESSO INTERNACIONAL ENVELHECER COM FUTURO (I Cief)
Dias: 30 de setembro e 01 de outubro de 2024
Horário: das 9 às 16 horas
Valores: O evento é gratuito.
Público: Estudantes (graduação e pós-graduação), pesquisadores, professores, profissionais do setor público e privado, de diversas áreas e setores, que atuam com o envelhecimento, organizações da sociedade civil, empresas privadas, órgãos públicos, pessoas de diversas gerações que se interessem pelo futuro do nosso envelhecer.
Certificado: Será emitido certificado de participação para todos que estiverem presentes e devidamente inscritos na VI Longevidade Expo+Fórum.
Local: O Congresso Internacional será realizado dentro da VI Longevidade Expo+Fórum, no Distrito Anhembi, em São Paulo: Av. Olavo Fontoura, 1209 – Santana, São Paulo, SP.