Como não falar de amor, suavidade e delicadeza sem lembrar de “O Sabor da Vida”?
Ambientado em 1885, O Sabor da Vida acompanha a vida profissional de Eugénie (Juliette Binoche), uma conceituada cozinheira, e sua relação com Dodin (Benoît Magimel) com quem trabalha há 20 anos. Cada vez mais apaixonados um pelo outro, seu vínculo se transforma em um romance e dá origem a pratos deliciosos que impressionam até mesmo os chefs mais conceituados do mundo. Eugénie, que sempre priorizou por sua liberdade, não pensa em se casar, então quando Dodin se depara com a relutância de Eugénie em se comprometer com ele, o cozinheiro decide começar a fazer algo que nunca fez antes: cozinhar para ela.
Como não falar de amor, suavidade e delicadeza sem lembrar de “O Sabor da Vida”, filme de direção e roteiro do vietnamita Tran Anh Hung. Sim, praticamente impossível. Posso dizer que degustei essa história ainda na tela mágica do cinema e, diga-se de passagem, muito, mas muito bem acompanhada.
Ambientado em 1885, o “Sabor da Vida” conta a história do relacionamento entre Eugénie (Juliette Binoche), uma talentosa cozinheira, e Dodin (Benoît Magimel), um renomado gourmet para quem ela trabalhou por duas décadas. Além de mostrar a admiração mútua entre ambos e a prática da gastronomia, o filme mostra como a relação e o amor entre os dois se transformou durante o tempo e como suas escolhas e preferências pessoais afetam a dinâmica.
Escolhi Eugénie e Dodin porque o sentimento compartilhado entre esse homem e essa mulher guardam a intensidade do amor nutrido e alimentado (algo raro nos dias de hoje em que a efemeridade e a intolerância imperam nas relações afetivas) ao longo dos muitos anos vividos por todos os cantos de uma cozinha simples, mas ao mesmo tempo elaborada, refinada e cheia de prazeres.
Pode se sentir o perfume, o gosto, as texturas, os aromas das especiarias, a forma cuidadosa na elaboração do preparo, o suor, o calor que emana do fogão a lenha, as glaçagens, as quenelles, os molhos (sobre eles, diz Dodin: “devem ser memorizados antes e depois da manteiga”) que dão sabor e riqueza aos legumes, verduras, carnes e peixes, itens que devem ser “acariciados” e respeitados, segundo a linda e eterna Eugénie.
Sem contar o primor das sobremesas que carregam os mais raros sentimentos e emoções que um ser humano pode alimentar durante toda uma vida. Acho que só quem cozinha por amor, sabe a profundidade do que relato aqui. Como diz a jovem Pauline quando prova o doce omelette norvégienne (é uma espécie de bolo, regado com licor ou vinho, recheado de sorvete, tudo coberto com um merengue lindamente corado pelo calor do forno):
CONFIRA TAMBÉM:
“Quase chorei”. Quando Eugénie pede por mais detalhes sobre o sentimento, a menina confessa não saber, mas consigo entendê-la. A memória afetiva esconde coisas difíceis de traduzir em palavras, as receitas reproduzidas de comidas ou doces que comemos nas nossas infâncias infelizmente nunca conseguirão trazer o mesmo cenário, a mesma cozinha, as mesmas mãos daqueles que amamos e que não estão mais ao nosso lado.
Meu pai fazia uma bala de mel na pedra do nosso humilde quintal que, creio, em tempo algum conseguirei trazê-la novamente a minha boca. Ao lembrar, restam as saudades do que ficou lá atrás e não voltará.
Minha mãe, quando ainda tinha boas condições de saúde, recebia-me com bolos deliciosos: fubá, coco, chocolate, além das comidinhas feitas especialmente para mim. Hoje sou eu quem procura encantá-la com meus quitutes elaborados com os melhores ingredientes: lembranças, saudades, atenção, cuidado e muito amor.
Como o tempo não para e não somos eternos, imagino que meus amores, os pequenos Pedro e Julia lembrarão da mesma maneira dos meus charutinhos de folha de uva, das esfihas, dos amantegados, das comidinhas feitas madrugada afora.
O amor compartilhado com Eugénie quase transforma nosso Napoleão da culinária, como Dodin era chamado, em um legítimo poeta: “A descoberta de uma nova iguaria deixa a humanidade mais feliz do que a descoberta de uma nova estrela”. E ele tinha razão.
Você deve se perguntar, mas e a “quentura” dessa relação? Até isso, o diretor soube explorar com extremo cuidado e elegância.
– Dodin: Posso bater à sua porta essa noite?
– Eugénie: Desde quando você precisa me perguntar antes? É só bater. Você vai ver se ela abre ou não.
– Dodin: Te peço mais uma vez: case comigo.
– Eugénie: Quantas vezes você ainda vai me pedir isso? Depois de casada, perco o direito de deixar minha porta trancada. Passamos mais tempo juntos do que muitos casais. Estudamos livros e receitas, colocamos em prática, comemos. E você me faz rir com seu senso de humor. Então, não estamos bem assim?
– Dodin: Tem uma máxima que diz: “O casamento é um jantar que se começa pela sobremesa”. O primeiro casal Adão e Eva começou pela sobremesa
– Eugénie: É verdade que tudo começou por causa do que eles comeram.
E a rotina segue até o momento em que Eugénie adoece. Nesse momento ele decide preparar um verdadeiro banquete a sua mulher mais amada. As iguarias curam, algumas vezes, pelo menos por um certo tempo.
Tocado com a perspectiva de perdê-la, admirando-a, ele diz: “Um poeta chinês do século 11 obedeceu a uma regra durante a vida toda. Ele trabalhava um ano inteiro e dedicava o ano seguinte à esposa. Eu deveria ter seguido o exemplo dele”
– Eugénie: Tem muitas palavras erradas nisso que você acabou de dizer. Por exemplo: você não é poeta, nem chinês e, também, tem a palavra “esposa”.
Eugénie é uma mulher inteligente, ela sabe seu lugar, o papel que ocupa e não se lamenta por isso, ao contrário, orgulha-se.
E no outono de suas vidas, eles decidem se casar.
“Sim, estamos no outono de nossas vidas, e digo isso sem nenhuma melancolia. E vamos nos casar antes do fim do outono. O outono, de ouro e de chuva, é uma estação sábia e sensata. Também é uma ótima estação para a gastronomia. Uma rosa (Eugénie) é mais requintada do que qualquer outra. […] O outono é a transcrição dos prazeres inocentes do verão fugaz aos sólidos prazeres do inverno. Eugénie, casemos no outono para acolhermos juntos o inverno e seus deleites.” (Dodin)
Agora o protagonismo é da câmera que passeia silenciosamente pela cozinha onde repousam as panelas, o pilão, o fogão a lenha, as especiarias, enfim, as escadarias que os levam ao amor de tantas noites, de portas abertas ou não.
Agora restam apenas Dodin e Eugénie, duas taças de vinhos e as últimas palavras:
– Eugénie: Vivemos sob o mesmo teto há mais de 20 anos. Como você faz para manter essa constância e perseverança comigo?
– Dodin: Santo Agostinho dizia que a felicidade é continuar desejando o que já temos. Mas será que já tive você?
– Eugénie: Posso te fazer uma pergunta? É muito importante para mim. Sou sua cozinheira ou sua esposa?
Dodin acolhe suas mãos e diz: Minha cozinheira.
Eugénie sorri e agradece.
Um homem e uma mulher que se amaram longe das convenções, desfeitos dos grilhões que poderiam limitar seus sentimentos, seus universos de afeto.
Assim eram Dodin e Eugénie. Ele que admirava as primeiras gotas frias de uma chuva, os primeiros flocos de neve, as primeiras crepitações de uma chaminé, o primeiro botão de flor. Essas primeiras coisas que acontecem todo ano o encantavam. Ela queria o verão, o sol! “Gosto de sentir essa sensação de ardor. Eu preciso dessa sensação no meu corpo. Como as brasas que manipulo todos os dias. Mesmo depois que eu partir, ainda será verão”.
Feliz Dia dos Namorados a todos e especialmente ao meu eterno amor.
Fotos: divulgação