O luto pela perda de uma amizade é válido e merece ser respeitado e acolhido.
Por Nazaré Jacobucci (*)
“ Faça uma lista de grandes amigos. Quem você mais via há dez anos atrás? Quantos você ainda vê todo dia? Quantos você já não encontra mais?” (A Lista – Oswaldo Montenegro)
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Faz algum tempo que quero escrever sobre este luto – o luto por uma amizade desfeita. Esse desfazer pode ser por duas possibilidades: pode ser por morte de um amigo ou pode ser por afastamento de uma pessoa estimada – a pessoa deliberadamente se afastou de você. Essas foram as experiências que eu vivenciei e não foi fácil de lidar. Na verdade, foi extremamente dolorosa e me deixou marcas profundas, mas também me proporcionou uma série de reflexões sobre as relações humanas.
A amizade, assim como uma paleta de cores vibrantes, tem o poder de transformar momentos comuns em experiências inesquecíveis. Imagine um dia monótono, cinzento e sem graça, sendo agraciado pela presença de um amigo querido. Aquela conversa que começa despretensiosa e que pode se transformar em uma sessão de risadas, conselhos sinceros e recordações valiosas. A amizade adiciona uma camada de profundidade e beleza à nossa vida cotidiana.
Mesmo nas tarefas mais simples, como tomar um chá ou caminhar no parque, a presença de um amigo transforma a experiência em algo especial e significativo. Esse laço de amizade cria uma teia de memórias compartilhadas, dando mais sentido e valor aos momentos que, de outra forma, seriam apenas mais um dia no calendário.
Contudo, perder uma amizade pode ser uma experiência dolorosa que pode desencadear uma série de sentimentos e emoções, similar àqueles vividos em outras formas de luto. Isso não é apenas pelo distanciamento da proximidade física, mas pela intimidade emocional e o compartilhamento das experiências e memórias que definiam essa relação.
Luto desautorizado
No entanto, esse tipo de luto por vezes não é reconhecido e/ou validado. O luto não reconhecido, também conhecido como “luto desautorizado”, é uma forma de luto que não recebe o reconhecimento e/ou a validação adequada da sociedade. Esse processo de luto pode surgir em diversas situações, desde a perda de um animal de estimação até a ruptura de amizades, o término de um relacionamento não oficializado ou a morte de alguém com quem não se tinha uma relação oficialmente reconhecida, como um ex-parceiro ou um amigo íntimo.
O conceito de luto desautorizado foi desenvolvido pelo Dr. Kenneth Doka em sua obra “Disenfranchised Grief: Recognizing Hidden Sorrow“. Doka define esse luto como qualquer tipo de perda que não é socialmente reconhecida ou validada, levando a pessoa enlutada a sofrer em silêncio. O luto não reconhecido pode levar a sentimentos intensificados de isolamento e incompreensão. A pessoa enlutada pode se sentir invisível, como se a sua dor não fosse legítima.
Essa falta de validação social pode dificultar o processo de luto, prolongando a dor e impedindo a recuperação emocional. O trabalho de Kenneth Doka destaca a importância de validar todas as formas de luto. Ele argumenta que a sociedade deve reconhecer e apoiar todas as formas de perda, independentemente do contexto. Doka sugere que uma maior compreensão e validação do luto não reconhecido pode ajudar a reduzir o estigma e fornecer o apoio emocional necessário para aqueles que vivenciam esse processo de luto. Afinal, cada perda é válida e merece ser respeitada e acolhida.
Com efeito, a perda de uma amizade é uma experiência que pode ser devastadora e pode incluir sentimentos de tristeza, raiva, culpa, confusão emocional, e até mesmo uma sensação de vazio. A dor pode ser mais profunda, principalmente se esse amigo for uma figura de apego seguro para você. A Teoria do Apego, desenvolvida por John Bowlby, psiquiatra inglês, é uma base fundamental para entendermos o luto. Bowlby sugere que o luto é uma resposta natural à perda de qualquer figura de apego importante, o que inclui amigos próximos.
Dr. Colin Murray Parkes, um renomado psiquiatra inglês especialista em luto, expandiu os estudos de Bowlby sobre o apego e o luto. Em seu livro “Luto: Estudos Sobre a Perda na Vida Adulta” Parkes descreve o luto como um processo que envolve o reajuste de todas as áreas da vida afetada pela perda. Esse reajuste pode ser particularmente desafiador quando se perde uma amizade, já que os amigos muitas vezes desempenham múltiplos papéis: confidente, apoiador emocional, e até mesmo um espelho para nossa própria identidade.
O desfazer-se de uma amizade também pode significar a perda de uma parte da própria identidade. As amizades possuem um papel importante na composição de quem somos, nossas percepções e nosso modo de ver o mundo. Quando elas se desfazem, é necessário redescobrir-se, reencontrar um novo equilíbrio e seguir em frente com as lições aprendidas.
A chave para atravessar esse processo é permitir-se sentir a dor, procurar apoio em outras relações e atividades significativas, e dar-se tempo para assimilar e compreender o rompimento. O luto, seja ele pela perda de uma amizade ou por outra forma de perda, é um processo de crescimento pessoal e de reconfiguração emocional que, apesar de doloroso, pode trazer novas perspectivas e fortalecimento psicoemocional.
Referências
Casellato, G. Luto não reconhecido: o fracasso da empatia nos tempos modernos. In.: Casellato, G. (Org.). O Resgate da Empatia: suporte psicológico ao luto não reconhecido. São Paulo: Summus, 2015. p. 15-28.
Doka, K.J. Disenfranchised grief: recognizing hidden sorrow. Lexington, Mass.: Lexington Books, 1989. 347p.
Parkes, C.M. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. Tradução: Maria Helena Franco Bromberg. São Paulo: Summus; 1998. 291 p.
Parkes, C.M. Complicated Grief. Anotações de aula no St Christopher’s Hospice. 2015.
(*) Nazaré Jacobucci é autora do livro Legado Digital: Conhecimento, Decisão e Significado – Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital. Responsável pelo Blog Perdas e Luto.
Foto de Kindel Media/pexels.