O processo de envelhecimento é comum a todos os seres vivos, é uma parte inevitável do ciclo da vida. Mas quando o assunto é demência fica ainda mais complexo e assustador.
Julia Shimazumi Berber (*)
“Nossos pais nos veem crescer, mas esquecemos que nós também os vemos crescendo.”
O processo de envelhecimento é comum a todos os seres vivos, é uma parte inevitável do ciclo da vida. Mas quando o assunto é demência fica ainda mais complexo e assustador. A doença ainda é estigmatizada e cheia de preconceitos:
Louco, vergonhoso, parece até uma criança…
Na maioria das vezes escolhemos ignorar essas condições e varrê-las para debaixo do tapete. Afinal, por que pensar na possibilidade de perder a autonomia?!
Foi exatamente nesse espaço “debaixo do tapete” que passei a primeira metade do semestre, convivendo e observando de perto esse grupo etário.
Ao sair do carro, avistei Gerânio parado junto a porta de entrada do Centro-Dia. Ele estava envolvido em uma conversa com uma senhora, que imediatamente reconheci de uma atividade que havia observado anteriormente. Ao lado deles, uma mulher mais jovem também estava presente, o que me levou a supor que fosse algum membro da família da senhora, possivelmente sua filha.
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“Entra aí, Julia! Já tão começando!” exclamou Gerânio ao me ver, e eu subi rapidamente as escadas para me juntar aos idosos.
Assim que entrei na sala de estar, vi que os idosos já estavam reunidos em volta da mesa, que estava coberta com um plástico grosso e transparente. Tinha várias manchas coloridas de tinta espalhadas por toda parte – vestígios de atividades passadas.
Gerânio, o supervisor do Centro-Dia, contou que as famílias deixavam os parentes em horários convenientes e estes voltavam para casa ao final do dia. Durante o período de convívio “do portão para dentro”, o cuidado passava para as mãos dos profissionais do local trazendo à tona o nosso vício de julgar o outro – um desafio diário.
“Existem idosos que chegam aqui na segunda-feira com a mesma roupa que usavam na sexta-feira. Outro dia, uma idosa mal conseguia ficar de pé e caminhar porque não conseguia manter o equilíbrio com a fralda cheia. Então, me digam: quem é o culpado?”
Ficamos em silêncio por alguns segundos e eu comecei a refletir sobre como isso também seria um grande desafio para mim. No entanto, concluí que a culpa não deve ser atribuída às famílias, que têm suas próprias rotinas e o direito de aproveitarem a vida adulta sem se dedicar unicamente aos cuidados dos pais idosos”.
Durante minhas seis visitas, foi inevitável refletir sobre o peso da bagagem cultural que ainda se arrasta no inconsciente do público de descendência oriental. Os parentes cuidadores se veem forçados a balancear entre as necessidades voltadas para com o parente debilitado, ao mesmo tempo que preservam autonomia para viver sonhos, atividades remuneradas, higiene doméstica, etc.
A bagagem cultural que carregamos inconscientemente que condiz com a responsabilidade de honrar e dos pais, especialmente na velhice. Além disso, Gerânio mencionou o kodokushi (morte solitária), um fenômeno em que idosos falecem sozinhos em casa e ficam esquecidos lá por muito tempo e que, atualmente, quase não há lares para idosos no Japão, e que os idosos mais velhos cuidam dos idosos mais novos.
“Quem é o culpado nessa situação?”
“Você é mestiça, não é?” seu olhar estava focado em mim. Descobri que seu nome era Vitória. Vestia uma blusa vermelha que, além de combinar com a tinta da caixinha que estava pintando, era adornada com pequenos cristais cintilantes, apelidados pelas cuidadoras de “cristais Swarovski” de forma jocosa. Com um sorriso, mencionei que sou nihonjin por parte de mãe. Ela retribuiu o sorriso e demonstrou interesse em saber mais sobre mim.
Por que gastar tempo apontando dedos quando podemos simplesmente aproveitar o momento? Assim como nas atividades do Centro-Dia o que importa é o aqui e agora, não há certo ou errado, apenas a importância do momento presente.
Nada mais, nada menos do que escutar.
Escute.
Jacinto sempre se despedia da mesma forma com que me cumprimentava: um toque de cotovelos. Jacinto, a cada encontro compartilhava o relato comovente da irmã, sobrevivente de vários AVCs (Acidente Vascular Cerebral), em seguida, entusiasmadamente soltava a voz na Musicoterapia ao cantar MPBs (Música Popular Brasileira).
Margarida abriu os meus olhos para a vitalidade mesmo na idade avançada. Por onde caminhava, demonstrava que o idoso não precisa se enquadrar na imagem negativa que nos é repassada pela vivacidade e bom humor.
Cada flor é uma parte indispensável desse coletivo colorido. Coletivo, sim, já que há muita cumplicidade e também confrontos entre os frequentadores.
E com o “aqui e agora” encerrado, voltamos à pergunta:
Então me digam: quem é o culpado nessa situação?
A culpa não é minha, não é sua, não é deles. Deixar de enxergar as velhices é ignorar o caminho que ainda temos a percorrer.
No último, e sétimo dia de estágio, saí pensando se ele nos deixou com um incentivo para trabalhar com idosos no futuro, sobre o qual fiquei pensando na minha volta para casa:
Será que eu teria a paciência necessária?
Será que eu emocionalmente conseguiria lidar com as demandas?
Será que…
Mas, independentemente das incertezas do futuro, uma coisa posso afirmar com convicção: a experiência no Centro-Dia mudou minha perspectiva sobre o envelhecimento.
(*) Julia Shimazumi Berber – Depoimento do estágio de 3º ano– 1º Sem 2023, da turma EBIVE52, do Curso de Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde – FACHS-PUC-SP, sob a supervisão da Profa. Dra. Ruth G. da C. Lopes na disciplina Estágio Básico I, composta por atividade prática voltada para o exercício de competências e habilidades psicológicas que favoreçam a compreensão e posterior atuação em realidades específicas. O Estágio foi realizado no Centro Dia (Angels4U) – Unidade Saúde (SP). Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos participantes. E-mail: [email protected]
Imagem destaque de Min An/pexels