Se o envelhecimento e a morte sempre constituíram graves limites para a expansão do corpo, hoje essas barreiras estão sendo dinamitadas. As novas ciências da vida sonham com a possibilidade de “reprogramar” esses corpos para torná-los imunes às doenças, driblando tanto as penúrias da velhice como a fatalidade de morte.
Por Cláudia Soares de Oliveira (*)
Submetidos a todas as pressões do desencantado e deleitoso mundo contemporâneo, os indivíduos são interpelados pelos discursos midiáticos e pela enxurrada de imagens que ensinam tanto as conformações como as leis do “corpo perfeito”; ao mesmo tempo, são informados sobre todos os riscos inerentes às atitudes e aos estilos de vida que podem afastá-los perigosamente desse ideal. Deles dependerá tornar-se o que são: seja transformando seus corpos numa vitrine de suas virtudes e seu invejável bem-estar, ou o contrário.
Mas acontece que o mero fato de viver – o acaso de ser um corpo vivo, orgânico e material – já é uma enorme desvantagem nessa missão, pois quase tudo conduz à fatídica deterioração física. Comer, por exemplo, mesmo que seja apenas alimentos leves e saudáveis; ou simplesmente estar no mundo enquanto o tempo transcorre e vai deixando suas abomináveis sequelas impressas na carne. Tudo conduz, inexoravelmente, à degeneração. Cabe formular, então, uma pergunta central no mundo contemporâneo: em pleno auge do “culto ao corpo”, o que é exatamente isso que tanto veneramos? Apesar de todos os avanços, das lutas e das libertações que soubemos conseguir, em pleno século XXI, nossos corpos ainda são acusados de serem impuros e malditos.
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Claro que em outros sentidos, bem diferentes daqueles que estigmatizaram a carne humana sob o cristianismo medieval, por exemplo, ou mesmo daqueles outros que disciplinaram seus movimentos e desejos à sombra da moral burguesa e da Biopolítica cunhada por Foucault. Mas hoje o corpo continua sob suspeita e é submetido a uma intensa vigilância, pois sua carnadura insiste em tender fatalmente às tentações e às corrupções. Se antes, porém, os horrores suscitados por tal condição tinham a tonalidade da transcendência religiosa ou do intimismo laico – que podia envolver pecados terrenos, culpas interiorizadas e expiações divinas –, a nova versão desses pavores recicla as antigas penalidades para reorganizá-las em torno de um eixo que pertence à ordem das aparências e também pertencem ao eixo da sociedade capitalista onde o corpo passa a ser capital, o tão falado e almejado capital humano.
Por isso, as tentações agora assumem outras formas: alimentos calóricos, drogas, cigarros, álcool, hábitos sedentários e outros costumes que se consideram insalubres ou pecaminosos e que também degeneram a capacidade cognitiva o que impedirá a que esse corpo seja um bom capital humano. Já a corrupção, por sua vez, apresenta-se sob a sombra do envelhecimento e todo seu séquito de efeitos colaterais desagradáveis: gordura, flacidez, vincos, despigmentações, calvície, dentre outros sinais da organicidade perecível e da finitude biológica como as doenças degenerativas e as demências.
Se os contornos do corpo humano estão se redefinindo atualmente, essa proeza não se deve apenas às maravilhosas soluções técnicas que não param de se multiplicar, mas também a outras transformações que afetam as sociedades ocidentais cada vez mais aglutinadas e conectadas pelas redes dos mercados globais.
Assim, se o envelhecimento e a morte sempre constituíram graves limites para a expansão dos corpos humanos, hoje essas barreiras estão sendo dinamitadas. As novas ciências da vida sonham com a possibilidade de “reprogramar” esses corpos para torná-los imunes às doenças, driblando tanto as penúrias da velhice como a fatalidade de morte. Trata-se do ancestral sonho da eterna juventude, renovado como uma grande ambição da nossa época e como uma promessa que, talvez, logo estará à disposição de todos – ou, pelo menos, de todos aqueles que tenham condições de pagar por tão magnífica receita. Essa última ressalva merece ser sublinhada, pois caso tal panaceia venha de fato a ser descoberta, adquirirá as feições prosaicas de uma mercadoria ou de toda uma linha de produtos e serviços; e, como tal, estará sujeito a um preço que poderá ser pago em diversas modalidades e com facilidades de crédito.
Mas além de se desenvolver no cerne da cultura mercadológica em que vivemos, esse delírio técnico tão contemporâneo implica um correlato moral bastante complexo, com faces contraditórias e inúmeros desdobramentos, cujos indícios irradiam por toda parte e clamam por serem indagados.
Vale a pena começar potencializando o estranhamento: não é fácil ser um corpo velho hoje em dia, por mais paradoxal que isso soe numa época que ampliou o direito à velhice de forma inédita e desativou quase todos os tabus que constrangiam as realizações corporais.
Por que, apesar de todos esses evidentes avanços e considerando as claras vantagens que implica viver nestes começos do século XXI, é tão difícil assim ser velho (ou velha) no mundo contemporâneo?
Esta análise pode se dar por diferentes caminhos. Mas não é possível responder sem antes refletirmos sobre a concepção de corpo usada pelas mídias, pelas políticas públicas e como esses discursos estão colmatando esses corpos e as subjetividades contemporâneas. Assim, uma nova pergunta deve ser formulada: Estamos diante do “corpo” ou de “corpos” e, ainda, de que “corpo” afinal se trata?
E essa última indagação abre um leque amplo de questões: Trata-se do corpo biológico objeto de pesquisas, que, na contemporaneidade, atingiram seu pico? Do corpo, objeto da medicina, que tem vísceras, intestinos, que possui um fora e um dentro, esmiuçado nas radiografias, em exames cada vez mais complexos que acabam por realizar um ideal de visibilidade que exclui o sujeito de seu saber? Do corpo, imerso em intrincadas relações de poder, que se apresenta como marca de distinção na sociedade? Do corpo, vigiado em todos os seus pontos por um olhar invisível? Do corpo malhado, esculpido e torneado? Do corpo da moda, cuja roupa que o encobre pode trazer a assinatura do estilista, ou apenas o corpo nu, despojado de qualquer vestimenta ou adorno, não sem, contudo, portar traços, dobras e grifo próprio? Do corpo, que sai do espaço privado e ganha as páginas dos jornais, as propagandas de TV, os anúncios das revistas, os outdoors da cidade e transita pelas ruas? Do corpo, atravessado pela linguagem ou pelo horror produzido quando dela se priva, como no corpo catatônico?
A partir destas aberturas, as pesquisas dos gerontólogos devem buscar analisar os discursos vigentes, o que não necessariamente implica em buscar novas palavras, mas sim devem buscar principalmente novos entendimentos das palavras que já existem, contextualizando – pesquisa e pesquisador – atravessados pelo fluxo da contemporaneidade.
Estas reflexões farão parte do curso a ser ministrado no Espaço longeviver, em maio. Vejam o cartaz abaixo. Maiores informações pelo email: [email protected]
(*) Cláudia Soares de Oliveira é Psicopedagoga (PUC-SP, 2005), Especialista em Psicomotricidade (ISPE – GAE – OIPR, 2002), Gestão de Programas Intergeracionais (Universidade de Granada, 2011) e Gestão do Terceiro Setor (IATS, 2011), Mestre em Gerontologia (PUC/SP, 2018). Atualmente trabalha na Associação Travessia atuando com crianças, jovens e adultos especiais. Tem experiência na área Pedagógica e Psicopedagogia atuando principalmente nos seguintes temas: longevidade, envelhecimento, aposentadoria, memória, cuidado, saúde e doença. E-mail: [email protected]