Historicamente, as pessoas idosas negras têm uma trajetória marcada pelo racismo, machismo, discriminação por deficiências, discriminação pela idade…
Paulo Cezar Santos Ventura (*)
Pessoas idosas são todas aquelas pessoas que têm mais de sessenta anos. Essa é uma definição importante exatamente por ser simples e operacional. Ela dá uma medida precisa e isso é importante para a execução de políticas públicas para pessoas acima dessa faixa etária. O mais importante é que ela não define velhice. Este é um conceito diferente que, por não ter uma definição operacional é plena de subjetividades e pessoalidades. Outro fator importante dessa definição é o fato de não definir gênero. Pessoa idosa contempla todos os gêneros possíveis (LGBTQI+, além do Masculino e Feminino) definidos ou indefinidos. Nem cor ou raça.
CONFIRA TAMBÉM:
Para escrever sobre vidas idosas negras preciso questionar primeiro: quem é negro no Brasil e no mundo? O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) usa o critério de autodeclaração de cor ou raça dos entrevistados seja no censo, seja na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). A população consultada se declara pertencer a um dos cinco grupos étnicos: branco, negro, pardo, amarelo ou indígena.
Os últimos dados da PNAD sobre cor e raça da população brasileira, de 2015, indicavam que 45,5% da população se autodeclarou branca, 45% se autodeclarou parda, 8,6% preta e menos de 1% se autodeclararam amarelos ou indígenas (esses dados podem ser vistos na página do PNAD/IBGE, indicada abaixo). A população brasileira aumentou, no período 2010 a 2015, de pouco mais de 201 milhões para mais de 211 milhões, sendo esses números atualizados por prospecção estatística, e os dados podem ter se modificados ligeiramente até os dias de hoje. Mesmo com possíveis modificações, a população branca é minoria no Brasil.
A abordagem metodológica do IBGE vem sendo contestada pela UNEGRO (União dos Negros pela Igualdade) que defende uma classificação diferente, considerando negras todas as pessoas pardas e pretas. A UNEGRO aceita a classificação do IBGE por causa dos dados históricos. Mas, segundo eles, há uma resistência por parte de muitos em assumir a cor preta e preferem ser incluídos na lista de pardos, principalmente na região Sudeste.
Por mais de 100 anos o IBGE solicita a autodeclaração dos entrevistados nos cinco grupos étnicos, já colocados acima. Assumindo aqui a abordagem da UNEGRO, constata-se que a população negra no Brasil (pretos mais pardos) soma 53,6%.
Ainda usando os dados do PNAD/IBGE, a população idosa no Brasil aumenta rapidamente e atinge 31,7 milhões, ou seja, 14,7% da população, hoje estimada em 213,94 milhões de pessoas (estimativa do segundo trimestre de 2022). E entre esses quase 32 milhões de pessoas idosas, 48% são pessoas idosas negras. O que esses números querem dizer? 53,6% da população brasileira é negra, mas apenas 48% da população idosa brasileira é negra. Os negros não envelhecem? Morrem mais cedo?
Historicamente, este grupo, o de pessoas idosas negras, tem uma trajetória marcada pelo racismo, machismo, discriminação por deficiências, discriminação pela idade (também sofrida pelas pessoas idosas brancas). Outras discriminações sofridas estão relacionadas aos locais de residência (negros são maiorias nos aglomerados e nas periferias), e dificuldades de acesso aos serviços, como de saúde pública. Isso sem falar no atendimento discriminatório às pessoas negras nos sistemas de saúde. Casos e mais casos são relatados todos os dias, relatos que se tornam públicos pela facilidade de registro através dos smartphones e divulgação nas redes sociais.
Alguns desses relatos indicam ofensas explícitas, diagnósticos imprecisos e procedimentos desnecessários, principalmente em pacientes negras e indígenas o que as levam a evitar consultas e tratamentos. Muitos pacientes negros não recebem, por exemplo, anestesias em procedimentos ambulatoriais e odontológicos em postos de atendimento público por causa da crença de que “pessoas negras são mais resistentes à dor”. Uma crença devastadora e com resquícios de crueldade.
As iniquidades sociais, o racismo estrutural e institucional são responsáveis por um envelhecimento precoce e ruim. Nem sempre as enfermidades identificadas recebem tratamento eficaz. E ainda um outro fator importante em se tratando de pessoas idosas, em geral, e negras, em particular, é a violência sofrida no cotidiano, muitas vezes em casa mesmo. As mortes precoces de filhos e filhas (o assassinato de jovens negros e negras no Brasil é um crime coletivo mais grave que em situações de guerra em outros países) levam à solidão e à falta de uma rede de apoio e de afeto.
O doutor em epidemiologia e servidor público da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e Professor Universitário, Roudom Ferreira Moura, após pesquisa sobre a vida e a saúde de pessoas negras na cidade de São Paulo, afirmou em reportagem ao jornal da USP, que “O Brasil é negro, mas o envelhecimento é branco”, situação piorada nos períodos de sindemia que estamos vivendo.
No domingo, 13 de novembro de 2022, assistimos a um concerto de despedida da pessoa idosa negra Milton Nascimento, 80 anos. Um gênio da música brasileira reverenciado no mundo inteiro. E qual a origem deste gênio? Milton é filho de uma mãe negra e solteira, que morreu muito jovem, e de pai desconhecido, ficando aos cuidados da avó materna. Sua avó, não tendo condições de criá-lo o entrega a uma família para a qual ela trabalhava como empregada doméstica. Sua mãe adotiva, que tocava piano, foi quem o iniciou na música e na carreira musical, culminando na criação de todas as maravilhosas músicas que registram tão bem a alma do povo, principalmente o mineiro.
A democracia é definida como a forma de governo que trata as pessoas diferentes de formas diferentes, permitindo que todos tenhamos oportunidades iguais. E as pessoas, jovens e idosas, brancas, negras, amarelas e indígenas, tendo oportunidades iguais, conseguem construir riquezas.
Precisamos, portanto, não apenas no mês de novembro por causa da celebração do Dia da Consciência Negra, resgatar nossa ancestralidade e o respeito e admiração às pessoas idosas negras tão enaltecidas em nossa cultura. Esta cultura afro-brasileira não pode ser perdida em uma sociedade onde impera o capitalismo selvagem e com riscos de virada ao fascismo.
(*) Eu, Paulo Cezar Santos Ventura, escritor e professor, Licenciado e Mestre em Física, e Doutor em Ciências da Comunicação e Informação pela Université de Bourgogne, França, hoje uma pessoa idosa negra, estou a escrever esse texto porque tive oportunidades e soube aproveitar muitas delas. Peço respeito às Pessoas Idosas Negras. Nossas vidas também importam. E-mail: [email protected]. Instagram: @paulocezarsventura