Nyad fala de uma idosa que atravessou a nado um percurso de Cuba aos Estados Unidos
Por Cíntia Liesenberg (*)
Final de ano, abro o computador para mais um dia de uma professora em fechamento de semestre às voltas com correções de trabalhos de alunos. Logo os algoritmos me oferecem o anúncio de um filme, Nyad, que surge na tela como um poup-up. Rapidamente apago, porque meus interesses no momento são outros, ainda que tenha me chamado a atenção seu tema, sobre uma mulher que atravessou a nado um percurso de Cuba aos Estados Unidos, já idosa.
O interesse inicial que me puxa há muitos anos para produções midiáticas em torno da temática do envelhecimento e longevidade humana e a paixão pelos mares me fazem curiosa para assisti-lo, além do apelo: “inspirado em uma história real”.
Ainda assim, parto um tanto cética, diante da apresentação de um filme que acentua uma representação da velhice de feitos extraordinários, ou seja, de uma velhice cujas realizações são possíveis apenas para aqueles poucos que fogem ao comum, em contraponto a outras narrativas, também polarizadas, que abordam essa fase da vida apenas como um período de declínio e perdas.
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O filme em questão é Nyad, um longa metragem norte americano, baseado na autobiografia da nadadora Daiana Nyad, escrito por Julia Cox e dirigido por Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jummy Chin. Foi lançado em setembro nos Estados Unidos, em meados de outubro nos cinemas brasileiros e, em menos de um mês, disponibilizado em streaming, pela Netflix, sua produtora.
Tem nos papeis principais: Annete Bening, no lugar da esportista; Judie Foster, interpretando Bonnie Stoll, companheira e treinadora de Daina e Rhys Ifans, como o navegador John Bartlet.
Na plataforma, o filme é apresentado como uma obra de classificação indicativa para maiores de 14 anos, por conter cenas de violência e drogas ilícitas (das quais não me lembro). Entre os gêneros, temos as classificações: “filmes sobre esportes, LGBTQIA+ e drama, com acento para cenas inspiradoras e comoventes”.
Sua descrição, reforça a ideia de uma história de aventura e realização pessoal, com caráter de excepcionalidade: “Aos 60 anos, Diana Nyad se prepara para realizar o sonho de sua vida, nadar de Cuba até a Flórida, uma travessia de águas abertas, de mais de 160 quilômetros”. Por outro lado, os noticiários e páginas voltadas para o cinema e Wikipedia, muitas vezes tratam de questões para além do filme, envolvendo a trajetória de Nyad e controvérsias relativas à travessia final e às formas de assistência à nadadora, durante o percurso.
Poderíamos ficar nessas discussões relativas à fidelidade da obra aos feitos reais ou à sua construção narrativa como um clássico filme de superação, com uma narrativa conservadora que valida o lugar do sacrifício para o alcance do sucesso e esse, associado ao pódio, ao destaque e à competição. Ou mesmo, em um sentido contrário ou mais amplo, poderíamos refletir sobre a padronização de limites e restrições atribuídos aos sujeitos, tendo a idade como fator principal.
Mas Nyad permite ir além. Com ele podemos tecer discussões acerca das questões de gênero e relações homoafetivas entre pessoas idosas, uma vez que sua narrativa é entremeada pela relação entre a nadadora e sua companheira e treinadora, assentada na beleza de um amor maduro e profundo. Poderíamos falar também sobre as políticas de patrocínio e dos investimentos no esporte, e nas dificuldades do mercado em voltar-se para públicos mais velhos ou associar sua marca à população idosa, reproduzindo nessa esfera o preconceito e a destituição da velhice, em uma sociedade cada dia mais velha.
Ou ainda, uma abordagem psicanalítica, pela recorrência à menção das palavras do pai e sua nomeação, que moldam a carreira e motivação da atleta, ao longo de toda sua vida: “O que você pretende fazer com sua vida selvagem e preciosa?”. Nyad, a “Ninfa das águas”. Outras abordagens permitiriam também desenvolvimento, como discussões sobre a trajetória de vida, resiliência e finitude.
São muitas assim as temáticas que o filme evoca à reflexão, nas brechas sob o manto da narrativa simplista da superação. E por isso, gosto delas e tenho olhos voltados para o seu encontro. Nas brechas temos a visão do algo mais que se coloca em toda história, narrativa ou discurso, pondo em xeque padrões redutores de modos de vida ou de representações do viver.
Entre os pontos visíveis que aí se apresentam, destaco aquele que para mim se sobressaiu ao longo do filme, que diz respeito à relevância das redes de apoio para a vida e ainda mais na velhice. Esse ponto é reforçado nas palavras finais de Nyad ao sair do mar, fechando o trajeto a nado, transcritas a seguir:
Só tenho a dizer três coisas:
1) Nunca, jamais desistam
2) Você nunca está velho demais para realizar seu sonho.
3) Parece que é muito solitário esse esporte, mas tem que ter uma equipe.
Sobre as duas primeiras frases, podemos tecer poréns, pois, às vezes, pode ser mais sábio desistir de algo para se buscar novas rotas diante de impossibilidades reais da vida, daí reside o governo da resiliência. No segundo ponto, tendo a velhice um marcador também biológico, ainda que não somente, por vezes, sim, somos limitados por ela e, novamente a velhice nos pede traçar outros caminhos ou ressignificar algum sonho.
A última frase, no entanto, para a qual chamo atenção, no sentido do que representa para a vida humana, a sua constituição social e necessidade do outro e, como dissemos da constituição de uma rede de apoio, “uma equipe”.
Em Nyad, essa rede de apoio é formada pelas amizades, pela relação afetiva e amorosa, por profissionais que contribuem para o auxílio profissional, de desempenho e saúde. Não se vê a família, no sentido amplo, essa que, em nosso sistema social e legal é tida como aquela responsável pelo apoio aos idosos. Não que a família não seja importante, longe disso, mas para um atendimento integral ao sujeito, para uma vida plena, é preciso mais, é preciso a formação de uma rede, para além dela. E Nyad nos lembra o efetivo significado dessa palavra: a multiplicidade de pontos que se entrelaçam na constituição de um trajeto comum, onde o nó é a base. Em nosso caso esse nó é o afeto, o profissionalismo e o apoio mútuo.
Se Nyad nos lembra que uma velhice saudável pede uma rede de apoio muito mais ampla do que a familiar, isso se torna ainda mais significativo em um país como o nosso, de enormes desigualdades sociais, em que a pobreza assola parcela significativa da população e dificulta o acesso aos cuidados básicos e condições de vida dignas, como nos lembra tão bem, outro belo filme “Alzheimer na Periferia” (2018).
Dessa forma, mesmo sem tocar nessa questão, e falar muito mais em nome de uma representação da velhice ativa, que clama seu lugar na participação, Nyad nos transporta para muito mais, para a necessidade de um Estado mais presente para o estímulo e incentivo à formação de redes de apoio mais amplas, que vão além do universo da família mononuclear, cada vez mais enxuta, e contribua para que outras instituições e instâncias sociais desenvolvam formas e sejam dotadas de aparatos adequados para a constituição e manutenção de redes de apoio que permitam a cada velho e velha, deste país, viver em plenitude e na potência máxima de sua existência, de forma digna e amparada, para uma qualidade maior de vida.
Dessa forma, falando do lugar de uma velhice ativa, e de uma conquista excepcional, Nyad, por sua vez, nos remete às velhices mais vulneráveis, pois nos lembra da importância das redes de apoio em nossas vidas, e de que essas redes se formam também, e muito, pelas nossas amizades, pelas pessoas a quem temos afeto, por aqueles ligados a nós pelas nossas paixões, pela nossa participação social, e por profissionais especializados que podem nos auxiliar a continuar a viver um cotidiano de sonhos e experiências ricas.
O que é ainda mais importante, quando, para isso, nos tornamos dependentes da assistência de alguém, para realização das atividades mais básicas de vida. Nyad nos lembra que essa é uma face do cuidado que urge ser evidenciada, mas que requer investimentos em todas as instâncias sociais, com destaque para o papel do Estado na revisão de políticas públicas, para o mercado e iniciativa privada, no fornecimento de serviços e produtos adequados a essa população, enfim, de cada um de nós, em outras esferas, conferindo mais atenção ao nosso entorno e na manutenção dos laços que nos alicerçam e para aqueles aos quais possamos, de algum modo, também auxiliar.
(*) Cíntia Liesenberg é Relações Públicas. Doutora e mestra em Ciências da Comunicação. Professora da Escola de Comunicações e Artes da PUC-Campinas e Integrante do MidiAto – Grupo de Estudos Linguagem: Práticas Midiáticas, da ECA-USP. E-mail: acintialie@gmail.com
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